Como usar a lei para esconder a falta de ética

A Faculdade de Direito de Lisboa jamais valorizou o caso Farinho, pela simples razão de que a cultura corporativa é mais forte do que a cultura ética.

Devidamente torturadas, as leis confessam tudo. Se o Direito é aquilo que nos separa da barbárie, ele também pode ser usado para torpedear o bom-senso, atropelar a ética e ser a lixívia legal que se utiliza para remover as nódoas mais difíceis. Há quatro anos, escrevi nesta página um texto (“Professores Doutores de Coimbra”) sobre dois pareceres de insignes juristas, pagos por Ricardo Salgado, para demonstrar junto do Banco de Portugal que receber 8,5 milhões de euros de um cliente (mais tarde soube-se que foram 14 milhões) era um gesto perfeitamente legal e que em nada afectava a sua idoneidade para continuar banqueiro. Foi nessa altura que a palavra “liberalidade” entrou no léxico comum.

O Direito pode servir também para isto: justificar a inacção no momento em que se impõe tomar uma decisão ética dura. No sábado, escrevi um artigo noticiando um facto que ainda não era do conhecimento público: Domingos Farinho, docente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa sobre o qual recaem fundamentadíssimas suspeitas de ter sido em larga medida autor (no mínimo, co-autor) da tese de mestrado de José Sócrates, foi nomeado, a título definitivo, professor auxiliar da faculdade, com a aprovação unânime do seu Conselho Científico.

Houve quem se manifestasse contra o meu texto. Luís Pereira Coutinho, docente da faculdade, enviou uma carta ao director onde declara que “os professores auxiliares são avaliados de acordo com critérios definidos por normas” e que “seria ilegal considerar factos constantes de um despacho de acusação e não objecto de prova judicial como relevantes no âmbito de uma avaliação de mérito estritamente orientada pelos ditos critérios”. Miguel Teixeira de Sousa, também professor, repetiu o argumento: “o Conselho Científico da FDL é um órgão da administração pública que tem de actuar com respeito pela legalidade”, e que “não havendo, neste momento, nenhuma decisão judicial que comprove os referidos factos, não cabe ao Conselho Científico fazer julgamentos que pertencem aos órgãos constitucionalmente competentes.”

Louvo a coerência dos professores da FDL e nem por um momento duvido da sustentação dos seus argumentos. De facto, o “Regulamento de Concursos e Contratação na Carreira Docente da Universidade de Lisboa” nada diz sobre o que fazer se um professor for suspeito de fraudes académicas cometidas em Paris. Tal como nada diz sobre o que fazer se ele assediar alunos ou matar velhinhas em Maricá. Mas diz que “dois professores catedráticos ou associados” devem elaborar um “parecer fundamentado acerca do desempenho científico, pedagógico e noutras actividades relevantes para a missão da Universidade”.

Ora, se dois professores catedráticos de Coimbra conseguem elaborar pareceres argumentando que receber milhões de um cliente é uma prática legítima para um banqueiro, certamente dois professores catedráticos de Lisboa conseguiriam concluir que Domingos Farinho andou a praticar nas horas livres “actividades relevantes” que puseram em causa a Universidade. Por que não o fizeram? Fácil: porque não quiseram. Nunca houve um inquérito em on, um suspiro em off, um esforço mínimo de transparência. A Faculdade de Direito de Lisboa jamais valorizou o caso Farinho, pela simples razão de que a cultura corporativa é mais forte do que a cultura ética. Já seria um passo em frente admitir isso mesmo, em vez de andar a usar as leis e o Direito para se esconder de péssimas práticas.

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