Homenagem a José Manuel Tengarrinha

Talvez hoje poucos entendam o que foi a sua luta e da sua geração, e da que se seguiu, por uma “outra historiografia”.

Em textos que escrevi sobre história da História em Portugal, considerei José Manuel Tengarrinha como um dos “historiadores marginais” dos anos 60. Era isso que era na altura em que, no Estado Novo, a historiografia oficial ou académica se pautava, com raras excepções, por uma metodologia documentalista e narrativista. Nalguns casos essa “marginalidade” era conduzida, é certo, por um marxismo militante e simplista, mas tal não sucedia com Tengarrinha, que procurava aplicar à História uma metodologia complexa e de rigor, resultante da leitura dos documentos com um sentido narrativo mas interpretativo. Por isso a sua carreira universitária, em que se integrou depois do 25 de Abril (que o soltou da cadeia de Caxias), decorreu sem grandes sobressaltos, embora tivesse ainda de enfrentar, a partir dos anos 80, um ambiente que nem sempre lhe foi favorável.

Tengarrinha tinha sido, indubitavelmente, um dos pioneiros do estudo da imprensa periódica e de movimentos sociais e políticos do século XIX e todos lhe reconheceram as suas qualidades de historiador. Assim sucedeu com o meu mestre Silva Dias e com todos aqueles que, como eu, o conheciam quando, ainda estudantes, liam os seus livros editados pela editora Portugália. Mais tarde, colaborei com ele em diversas actividades historiográficas e até fiz parte do júri das suas provas de agregação, em 1996.

Talvez hoje poucos entendam o que foi a sua luta e da sua geração, e da que se seguiu, por uma “outra historiografia”. Daí que me recorde sempre, com uma tristeza profunda, de uma sala quase vazia em que Tengarrinha apresentou, há poucos anos, um livro na sua área de especialidade. Sinal dos tempos!

Mas acompanhei também, sem ser seu companheiro de jornada e quase por acaso, a sua carreira política. Passei pelo congresso de Aveiro de 1973 com o meu cunhado Franklim Torres, que acabou por ser um dos candidatos suplentes da oposição nas eleições desse ano. O MDP/CDE era o seu principal motor e já lá estavam — ou há muito já estavam — católicos (em que então me incluía) e até monárquicos. Por esse motivo, depois das emoções do 25 de Abril, vieram buscar-me a casa para participar activamente nas primeiras campanhas de formação política do MDP. Falava-se então de “unidade” num vasto leque político, uma espécie de “geringonça” que manteria e desenvolveria os ideais da revolução. Mas já não fui ao Congresso que fez passar o MDP a partido, para ser — tudo levava a crer — um “satélite do PCP” (como então se dizia). Em parte terá sido assim, independentemente da sensibilidade de homens como Tengarrinha, que desejava, com certeza, ter uma independência difícil de conseguir nessa altura.

Só percebi isso quando verdadeiramente conheci José Manuel Tengarrinha, simultaneamente como historiador e ideólogo. Era o mês de Março de 1984 e participei então no I Encontro de Historiadores Portugueses e Soviéticos. Quase diria que então se reproduziu do ponto de vista científico o espírito político inicial do MDP — seguiram para Moscovo historiadores portugueses de várias metodologias e sensibilidades ideológicas. Nessa altura estávamos ainda na União Soviética de Brejnev e os nossos colegas da URSS liam não por um marxismo crítico, mas por uma espécie de cartilha do materialismo dialéctico. Verifiquei então como Tengarrinha queria ser um homem livre, sobretudo quando analisava a realidade histórica e debatia ideias connosco e com os colegas soviéticos. Voltámos a encontrar-nos na URSS e em Portugal em outros colóquios, mas então já havia fendas na ideologia soviética, como a prever a “queda do muro”, da ciência, da ideologia e da política.

Quantas vezes voltámos a estar juntos depois disso? Não sei francamente. Recordo-me, por exemplo, de termos estado em S. Paulo e na Bahia, numa convivência científica e de lazer, onde comprovei a sua formação atlética de homem nascido à beira do mar. Numa praia próximo de Salvador, ele nadava nas águas turbulentas do Atlântico. Perguntei-lhe, depois de ver que se movia à vontade nas ondas revoltas, se o poderia com segurança acompanhar. Disse-me que sim e senti então a sua protecção. Só depois desse banho fomos ter com os nossos colegas para um bom almoço de peixe e de marisco.

Infelizmente não estive presente numa homenagem que lhe foi prestada na Faculdade de Letras de Lisboa, julgo que por falta de informação. Todavia, estive com ele no passado ano de 2017 num último convívio científico. Foi nos Encontros de Outono de Vila Nova de Famalicão, promovidos, em fins de Novembro, pelo município através da Casa-Museu Bernardino Machado, dirigida pelo meu colega Norberto Cunha. O tema era desta vez “Partidos e movimentos políticos. 1910-1974”. José Manuel Tengarrinha foi ali falar do MDP/CDE. Como eu disse no final da sua intervenção, foi uma lição duplamente histórica. Tengarrinha reflectiu como historiador sobre esse movimento que teve um papel fundamental, dinamizador e agregador, na oposição ao Estado Novo. Mas também ele representava a História — ele era então, mais do que nunca, uma figura da História.

São estas as palavras singelas que queria aqui deixar de homenagem a Tengarrinha. Apenas estas... Bem sentidas.

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