Quando um historiador tenta ser profeta

Se Rui Tavares fosse intelectualmente honesto teria verificado que eu estou entre os três eurodeputados portugueses mais produtivos do PE.

No passado dia 22 de junho, Rui Tavares (R.T.) publicou neste jornal um artigo de opinião intitulado "O Pinto que nos quer tirar o pio". O Pinto sou eu e o pio é o dele. Nesse artigo, R.T., com atropelo da verdade dos factos, dirige-me acusações politicamente infamantes que não posso deixar passar sem resposta. Vejamos.

1. Acusa-me de eu, para justificar a minha falta de trabalho como eurodeputado, ter dito que o Parlamento Europeu (PE) é inútil.

Pois bem, pouco depois de tomar posse como eurodeputado disse aos meus eleitores aquilo que os anteriores eurodeputados (R.T. incluído) haviam calado aos seus: que o PE é um parlamento sem iniciativa legislativa e que os seus deputados não podiam apresentar projetos de lei, debruçando-se apenas sobre as propostas legislativas que lhe são apresentadas pela Comissão Europeia (CE). E mesmo esse poder tem de ser repartido com o Conselho da União Europeia (CUE), pois a atividade legislativa do PE realiza-se através do processo de codecisão ou colegislação. Ou seja: o PE não só não tem iniciativa legislativa como tem de repartir com outros órgãos a competência para apreciar as propostas legislativas que lhe são presentes.

Quanto ao meu trabalho como eurodeputado, direi apenas que se Rui Tavares fosse intelectualmente honesto teria verificado que eu estou entre os três eurodeputados portugueses mais produtivos do PE. O primeiro é José Manuel Fernandes, do PSD, o segundo é António Marinho e Pinto, do PDR, e o terceiro é João Ferreira, do PCP. Bastar-lhe-ia consultar o ranking dos eurodeputados, que ele bem conhece, para saber que eu sou considerado no PE como o segundo deputado português mais produtivo e o 66.º entre os 751 eurodeputados (ver: http://www.mepranking.eu/8/state.php?st=PT&order=SCORE#meps).

2. Mas R.T. acusa-me ainda de coisa pior, ou seja, de não saber o que estava a votar quando, no dia 20 de junho, na Comissão de Assuntos Jurídicos (JURI), votei a favor da Diretiva dos Direitos de Autor no Mercado Único Digital. Vamos, então, aos factos de que R.T. não quis saber antes de escrever as falsidades que constam do seu artigo.

A proposta de diretiva da CE sobre este assunto foi publicada em 14 de setembro de 2016 e deu entrada na JURI (de que sou membro efetivo) em 6 de outubro seguinte. Desde então efetuei dezenas de reuniões com outros deputados e, sobretudo, com entidades estranhas ao PE que me iam transmitindo os seus pontos de vista, designadamente com associações de defesa dos direitos de autor. Reuni-me duas ou três vezes com representantes do Governo português em Bruxelas, com a Sociedade Portuguesa de Autores (também duas ou três vezes), com associações de defesa dos direitos dos autores de vários Estados-membros, com a federação que a nível da UE reúne essas associações, bem como com representantes da Google, do Facebook, do YouTube, da Wikipédia e ainda com cerca de 15 outras organizações preocupadas com a questão.

De salientar que os eurodeputados fizeram 995 emendas, das quais 59 foram apresentadas por mim e por um colega do meu grupo político (ALDE), o francês Jean-Marie Cavada. Recebi também uma carta de três professores universitários portugueses, apresentando-me a sua posição sobre a diretiva, a quem respondi apresentando-lhes a minha, bem como muitas dezenas de milhares de emails. Só nos três dias anteriores à votação na JURI, recebi mais de 62.000 (sessenta e dois mil) todos iguais, a que, obviamente, não respondi.

No final, ao cabo de quase dois anos, tinha formado uma convicção – a minha convicção – que, aliás, está em linha com as das organizações que defendem os direitos dos autores na UE e com a posição do Governo português, bem como com as de mais 21 Estados-membros, entre os quais França, Reino Unido, Espanha, Itália, Grécia, Suécia, Áustria, Dinamarca e Luxemburgo. A Hungria, de Viktor Orbán, não está entre os apoiantes da diretiva. Rui Tavares pode não gostar da minha posição sobre a diretiva, mas não tem o direito de afirmar que eu não sabia o que estava a votar.

Quando votei a favor do artigo 13.º eu estava a votar contra a generalização da pirataria na Internet que aniquila os direitos dos autores e contra o aproveitamento económico que as grandes multinacionais americanas de partilha de conteúdos fazem dessa pirataria.

Quando votei a favor do artigo 13.º eu estava a votar para que essas grandes multinacionais sejam obrigadas a celebrar acordos de licenciamento justos e apropriados com os autores, em vez de facilitarem e promoverem a utilização abusiva das suas obras.

Quando votei a favor do artigo 13.º eu estava a votar pelo estabelecimento de um equilíbrio entre os direitos fundamentais dos utilizadores e dos titulares de direitos de autor.

Em suma, quando votei a favor do artigo 13.º eu estava a votar a favor da cultura europeia, pois esta só se fortalecerá se os criadores europeus puderem defender eficazmente os seus direitos e forem efetivamente remunerados pela utilização das suas obras.

Se tivesse espaço poderia explicar por que é que praticamente tudo o que R.T. diz sobre o artigo 13.º é falso ou está errado. Mas, afinal, como é ele que acusa, é ele que tem de provar as suas acusações. Por isso, desafio R.T. a indicar, entre aspas, a palavra (ou palavras), a expressão (ou expressões) e a frase (ou frases) do corpo do artigo 13.º em que se baseou para dizer que o “artigo 13 significa, em suma, o estabelecimento de um método de censura prévia automática para tudo aquilo que pomos na net”. Por favor, R.T., não invente desculpas e indique exatamente onde está prevista a censura prévia que me acusa de ter aprovado. Assim, os leitores do PÚBLICO poderão avaliar o rigor do que acabo de aqui escrever, bem como o rigor daquilo que R.T. escreveu no artigo que ora desminto.

Uma última nota, em jeito de retorsão pelos descabelados ataques pessoais que me dirigiu.

R.T. pertence a uma elite intelectual que vive fechada num mundo de teorias, onde tudo é formalmente coerente e metodologicamente perfeito. Essa elite tem modelos teóricos para explicar todos os problemas da humanidade e pronuncia-se sobre as questões mais complexas com a displicência de quem põe sempre uma pedra tumular sobre todos os assuntos de que fala. Raramente conseguem debater ideias sem usar argumentos ad hominem, ou seja, sem recorrer a ataques pessoais. Fechados na campânula da sua infinita autossatisfação, essas pessoas desenvolvem modelos cognitivos assentes em sistemas de pensamento binários, a partir dos quais ignoram ou destratam as visões oriundas de outros pontos de observação.

Pessoas como R.T. têm, de facto, um grande problema: não sabem o que é vida porque tudo do que precisam está disponível nas prateleiras da sua autossuficiência teórica – e retórica. Por isso, quando alguém denuncia a libertinagem no direito de expressão, esses nefelibatas logo gritam que querem acabar com a liberdade de expressão; quando alguém combate a pirataria nos direitos de autor, logo berram que se pretende instaurar a censura prévia; quando alguém condena certos excessos esquerdistas, logo bradam que vem aí fascismo.

No campo da defesa da liberdade de expressão, há entre mim e R.T. uma diferença que esclarece definitivamente a posição de ambos. R.T. diz que sabe “qualquer coisa sobre os sistemas de censura prévia” porque passou “quase duas décadas a estudá-los como historiador”. E que concluiu R.T. ao fim de tão longo estudo? Ele próprio nos esclarece no artigo em causa: “São sistemas que por natureza violam a liberdade de expressão, inerentemente propensos a abusos...”

Pois bem, eu não estudei nenhum sistema de censura prévia, mas conheci o sistema de censura prévia da ditadura fascista em Portugal e combati-o, na minha universidade, nas ruas, nas cidades e em todos os lugares que frequentava, enfrentando a repressão, as perseguições e espancamentos policiais e a tortura nas prisões e nunca desisti desse combate até que um dia alguém determinou que o povo é quem mais ordena. Esses combates fizeram de mim o que sou – e serei até ao resto dos meus dias.

Por isso, R.T., tente ao menos conhecer um pouco melhor as pessoas que ataca.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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