Trump, migrações e a política europeia em migração (II)

É absolutamente redutor e basicamente insuficiente “culpar” a União Europeia pela situação a que chegámos.

1. Assinalaram-se no sábado 23 de Junho dois anos sobre o referendo britânico que nos ofereceu essa verdadeira tragédia ocidental que tomou o nome de “Brexit”. Imediatamente antes e depois disso, escrevi um punhado de artigos sobre o sentido político e social e até político-social do “Brexit”. Uma das principais ideias expendidas nesses artigos é de que o “Brexit” não representava nenhuma singularidade britânica, mas que denunciava um movimento profundo, quiçá tectónico, das sociedades ocidentais. A crise das migrações de 2015 na União Europeia ou a erupção fulgurante do vulcão Trump estavam em clara sintonia com o sentido – na dupla acepção de razão de ser e de destino – do “Brexit”. Foram muitos, especialmente entre os que gostam de acreditar na excepcionalidade (e, já agora, superioridade) britânica, aqueles que discordaram desta visão “unitária” dos desenvolvimentos políticos ocidentais, mas cada vez mais me convenço do acerto dessa visão.

Vem tudo isto a propósito da coincidência temporal entre a crise migratória norte-americana, hipostasiada no escandaloso caso da separação das crianças, e a profunda dissensão europeia a propósito da questão migratória. Esta coincidência temporal não é casual. Ela é um sintoma, ela reflecte um estádio da evolução política das sociedades ocidentais. Não se trata, por isso, de um problema europeu; não se cura, portanto, de um problema britânico; não se postula, afinal, como um problema americano. É um problema comum às sociedades ocidentais que, com diferenças muito assinaláveis, ainda têm enormes margens de conforto e de prosperidade e que, mercê da sua sofisticação política, revelaram uma abertura e uma tolerância sem paralelo geográfico ou até histórico. É um problema comum às sociedades ocidentais que vêem agora emergir com sucesso tonitruante modelos alternativos de governação e governança que prometem prosperidade, mas negam liberdade e sonegam tolerância. As sociedades ocidentais, pressionadas por essa nova competição e incapazes de satisfazer as altas expectativas inscritas nas suas cartas de marear, sentem-se pois tentadas a seguir as pisadas musculadas e restritivas dos competidores emergentes. São essencial e infelizmente sociedades na defensiva.  

2. Este ponto que quer aqui marcar-se, o de que a crise é ocidental e não especificamente “europeia”, tem sequelas políticas evidentes. A primeira delas é que é absolutamente redutor e basicamente insuficiente “culpar” a União Europeia pela situação a que chegámos. Se os Estados Unidos, país tradicionalmente acolhedor de imigração, fazem das migrações o principal polo de tensão política, como considerar que esta é uma questão puramente europeia? Se a razão mais visível para o voto pela saída no referendo britânico foi a questão do controlo de fronteiras, como confinar esta questão à política da União Europeia? Ninguém nega, bem pelo contrário, que este é um problema europeu, porventura o mais dilacerante. Mas é preciso ter consciência de que a formulação exacta é matizada: este é um problema “também” europeu. A retórica antieuropeia, sempre muito acarinhada na opinião publicada, procura esconder e secundarizar a evidência: não se cura de um problema intrinsecamente europeu, criado e exponenciado pela malévola União Europeia; trata-se isso sim de um problema comum aos países ocidentais, aí incluídos os Estados Unidos (e, claro está, o glamoroso Reino Unido). De modo algo diverso, mas bem presente, as realidades políticas australiana e canadiana também o comprovam.

3. A segunda ilação a tirar, aquela a que verdadeiramente queria chegar, é decerto mais ousada e diz respeito àquilo a que poderíamos chamar o efeito Trump. A eleição de Trump, já o disse há muito, foi extremamente negativa para o Ocidente, para o seu peso na equação global e, bem assim, para o desenvolvimento político interno dos vários parceiros da aliança ocidental. Basta ver a forma como encara a NATO e como trata os aliados para o perceber. Basta atentar na guerra comercial que acaba de atiçar para o compreender. Mas mais grave do que isso tudo e, de resto, em corte com a tradição política americana vem a ser a sua afeição à democracia iliberal. O desprezo pelos tribunais, pela independência dos juízes e imparcialidade dos procuradores e, além disso, a hostilidade para com as funções de controlo e de balanço do Congresso são sinais inequívocos da sua falta de escrúpulo constitucional e liberal. Para já não falar do apreço pela Rússia e por Putin, bem como por todos os tipos de autocracia. O despeito para com a democracia representativa e a afinidade com as ideias de uma ligação orgânica e directa entre o chefe e o povo são ostensivos. Esta atitude e esta cartilha dão imensa força a todos os que do lado de cá do Atlântico são adeptos confessos da chamada “democracia iliberal”. Foi assim com Farage na Grã-Bretanha. Mas é evidente com Kaczynski na Polónia, com Órban na Hungria, com Salvini na Itália. Muito do que estes políticos fazem não seria viável se não encontrassem em Trump o colo e o conforto. Esta observação não é do mundo da imaginação ou do delírio: atente-se tão-somente no que já fez o embaixador americano em Berlim. Bastará, aliás, ler os tweets que esta semana o próprio Trump escreveu sobre a situação política alemã (a respeito da crise entre CDU e CSU, Merkel e Seehofer) para ver como ele instiga e ampara as forças iliberais em toda a Europa. O que Putin faz, mais ou menos discretamente, por meio de hackers, Trump quer fazer, em modo manifesto, nas redes sociais.

4. É necessário que se reconheça: a voz grossa, o braço musculado e o punho em riste de muitos dirigentes europeus não seriam os mesmos se não tivessem a almofada de Trump e dos seus instintos. É por isso que, sempre que se encontram com Trump, é mais avisada a circunspecção de Merkel do que o afago jovial de Macron.

SIM e NÃO

SIM. Fernando Guedes. Um cidadão e empresário exemplar que antecipou e, na verdade, criou a nova era do vinho português. No trato, na atitude, na cultura representa como poucos o espírito do Porto.

NÃO. António Costa. A ausência do PM da cimeira informal sobre migrações lesa Portugal. Absolutamente incompreensível na semana da candidatura de Vitorino à Organização Internacional das Migrações.

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