O diabo travestiu-se de eucalipto

O eucalipto é um patinho feio, é certo, mas Portugal não o pode dispensar.

Na ressaca dos incêndios florestais era preciso encontrar bodes expiatórios para explicar a tragédia e para sublimar as décadas de incúria e omissão do Estado na gestão de um dos mais valiosos recursos naturais do país. O eucalipto prestava-se como nenhuma outra espécie a esse papel. É uma árvore feia, tornou-se hegemónica em exageradas monoculturas, arde com facilidade e, mais grave ainda, está associada a uma indústria de sucesso. Tudo junto e misturado produziu um discurso primário contra o eucalipto que entrou na moda, ganhou estatuto, calou a indústria e os que acreditam que em Portugal há lugar para florestas de produção e ameaça agora infiltrar-se nas políticas públicas por obra e graça da candura do PAN ou da contundência do Bloco. Um livro assinado por João Camargo e Paulo Pimenta de Castro (“Portugal em Chamas – Como Resgatar as Florestas”) vai mais longe e acaba por inserir o eucalipto numa espécie de complot no qual, como acontece nos bons filmes da série B, poderosos lobbies actuando nos bastidores se transformaram nos “novos donos disto tudo”, subjugando o interesse público à voracidade predadora do dinheiro. Problema assim tão grave só se resolve com uma resolução tipo BES e um processo-crime tipo Ricardo Salgado.

A denúncia tem a virtude de suscitar a discussão, mas esconde o perigo de partir de conclusões simplistas e mistificadoras. Não é da natureza ou da floresta que se acaba por falar, mas num modelo de desenvolvimento tão bucólico, tão romântico e puro, tão bem pensado pela iluminação anticapitalista que se aproxima mais da Albânia de Enver Hoxha do que da grande potência florestal da Europa, a Finlândia. O que fica em causa é a explicação da eucaliptização do país (que é real e danosa) como consequência dos actos de uma suposta cáfila de empresários e gestores públicos que vergaram o país aos seus interesses, deixando como rasto a razia dos incêndios e a desertificação do interior. Nesta narrativa, o interesse privado de milhares de pequenos produtores que encontraram no eucalipto uma fonte de rendimentos não conta. A competitividade externa da economia não importa. O mérito empresarial é um subproduto do clima conspícuo e venal que se criou. Resgatem-se as florestas, abatam-se os eucaliptos e os seus mentores. Apareceu uma nova elite de iluminados capaz de determinar o que interessa ou não interessa produzir e transformar.

Como em quase todas as discussões maniqueístas, as teses dos que vêem o demónio no eucalipto têm por base um fundamento de razão. É verdade que o crescimento da espécie (de 50 mil hectares para 850 mil hectares em meio século) fez-se à custa do desordenamento florestal patrocinado pela omissão do Estado. É verdade que nos últimos anos se desviaram recursos financeiros para o investimento em eucaliptais, colocando as espécies autóctones de crescimento lento numa posição secundária em termos de interesse para os produtores. É verdade que as entidades oficiais foram cedendo em demasia aos discursos produtivistas da floresta e esqueceram a biodiversidade que melhor a protege. É verdade que se chegou a propor o financiamento de eucaliptos em terras marginais de regadio. Mas também é verdade que todos estes passos foram feitos com discussões sérias e transparentes entre políticos, silvicultores, burocratas, gestores e ambientalistas. A Estratégia Nacional para as Florestas, de 2015, previa já o congelamento da área do eucalipto e este Governo legislou nesse sentido. Fez muito bem, como escrevemos na altura.

Regular e ordenar a eucaliptização é uma coisa; pretender instituir um anátema sobre a espécie para instalar a ideia de que houve um golpe contra o país, é outra. O excesso de eucaliptos é a prova do seu valor económico para os produtores e o testemunho do sucesso da indústria que o alimenta. As primeiras estratégias de investimento na produção de pasta e, depois, de papel foram patrocinadas pelo Estado e tinham uma justificação que só os românticos do “amor e uma cabana” não conseguem entender: Portugal tem aptidões naturais únicas para a floresta de produção com eucalipto e um país pobre de recursos como o nosso só por estupidez poderia dispensar esse potencial. Nessa estratégia de desenvolvimento, houve pessoas que criaram a “arquitectura das políticas públicas” e depois tiveram empregos nas próprias celuloses, notam os autores do livro. Num clima de suspeição que coloca o eucalipto como o agente de um crime de lesa-pátria, essa observação que menospreza a valia profissional de pessoas como João Soares ou de Tiago Oliveira pode ser discutível. É discutível. Mas não basta para criar a atmosfera de conspiração que acaba por minar a valia de uma fileira industrial de enorme importância para o país. 

Mal ou bem, mais bem do que mal, a liturgia desenvolvimentista que augurava futuro no “petróleo verde” existiu desde os primeiros anos da integração europeia. A floresta tornou-se um desígnio nacional, foi um dos eixos prioritários dos fundos estruturais e mereceu um plano específico do Banco Mundial que acelerou o crescimento dos eucaliptais (e, principalmente, do pinhal). Até 2004, a Portucel era uma empresa pública. Foi sob esse desígnio que o eucalipto se expandiu para lá do razoável, mesmo que, na maior parte dos casos, através de investimentos exclusivamente privados. Ao contrário do pinho, cuja área decresceu 263 mil hectares entre 1995 e 2010 (data do último inventário florestal nacional). O pinhal mingou porque perdeu interesse económico e não contou com o envolvimento da indústria como aconteceu com o eucalipto – uma estratégia que, de alguma forma, a indústria da cortiça quer agora recuperar, investindo no reforço da produtividade do montado. É a repetição desse abandono que se pretende?

O eucalipto é um patinho feio, é certo, mas Portugal não o pode dispensar. Em 2017, a Navigator (a anterior Portucel) foi a terceira maior exportadora nacional, com 1637 milhões de euros, logo a seguir à Autoeuropa e à Galp. Mas, mais importante, é a maior exportadora líquida porque baseia o seu negócio numa matéria-prima produzida no próprio país. Os autores do livro pedem que as empresas paguem “encargos sociais” por explorarem eucaliptos que ardem; não percebem que a riqueza e os postos de trabalho gerados são também eles “encargos sociais” que beneficiam o país.

Querer matar o eucalipto embrulhando-o nas provas de um crime pode fazer sentido nos devaneios idílicos dos que acreditam que a floresta dos nossos tempos é um mundo natural onde a humanidade redime os seus sonhos de pureza. Não é: mais de 90% das florestas do mundo são florestas de produção. Em Portugal temos área livre (32% do país são matos e incultos), temos ciência florestal, temos solos e climas, temos empresas de classe mundial e deitar tudo isto fora por causa das manias politicamente correctas ou dos devaneios de uma certa esquerda não é apenas uma estupidez: é, também, um atentado contra o país.   

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