Nodeirinho levantou o memorial que não devia ali estar

Um ano depois do incêndio que devastou parte do Pinhal Interior, a região voltou ao centro das atenções dos responsáveis políticos. Marcelo diz que pagamento de indemnizações é o “assumir de responsabilidade colectiva”.

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LUSA/PAULO CUNHA

As duas pedras de xisto de pouco mais de dois metros de altura em Nodeirinho, Pedrógão Grande, erguem-se para celebrar a vida, mas também para lembrar as 11 pessoas da aldeia que morreram no incêndio de há um ano.

O memorial idealizado por João Viola, artista morador de Nodeirinho, foi construído sobre fundações de partes de carros em que morreram pessoas e de pedras de casas destruídas. “É uma gigantesca memória, que está aqui e que não deveria estar”, conta aos jornalistas pouco antes de Marcelo Rebelo de Sousa chegar a Nodeirinho para inaugurar o monumento, no dia que marcou um ano do incêndio de Junho de 2017, em que morreram 66 pessoas e ficaram feridas 253.

Instalado em frente ao tanque onde se refugiaram várias pessoas da aldeia para escapar às chamas, as pedras celebram os vivos enquanto lembram os mortos. “Este memorial à vida é para não esquecer que é preciso mudarmos as nossas consciências em relação ao mundo que nos rodeia. Não podemos olhar para uma árvore que cresce, um eucalipto, e dizer isto é dinheiro.” Se não houver mudanças, considera, “eles morreram em vão”.

Em Nodeirinho, Marcelo abraçou, beijou e fez uso dos dedos para limpar lágrimas da cara de quem há um ano se viu rodeado pelas chamas. O último ponto de passagem do Presidente da República pela região foi a sede da Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão, para uma cerimónia privada que consistiu no lançamento de 66 balões brancos, um por cada vítima mortal. Contou com o chefe de Estado, mas não com António Costa nem com o presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande, Valdemar Alves. Ambos admitiram não ter sido convidados.

À saída da missa que assinalou a data na igreja matriz de Pedrógão, o primeiro-ministro sublinhou a “muito boa relação” que o Governo tem “com a associação de vítimas” e falou na importância de “respeitar aquilo que é a vontade e a forma como cada um quer viver os seus momentos de dor”.

Na igreja não coube toda a gente que estava para assistir à missa celebrada pelo bispo de Coimbra, Virgílio Antunes. Lá dentro, o sacerdote referira que, apesar de terem “experimentado a noite bem escura”, as gentes de Pedrógão “não perderam a esperança”. Ao longo da homilia escutada entre comoção e rostos fechados, Virgílio Antunes fez uso das parábolas bíblicas onde abundam as referências às árvores e aos lugares verdejantes. Elas “anunciam a força da vida que há-de crescer”. O momento de luto colectivo serviu para pedir o “eterno descanso dos defuntos e a consolação dos viventes”.

Marcelo e Costa não foram os únicos a percorrer um território visitado também neste domingo por Catarina Martins e Jerónimo de Sousa.

Floresta e revitalização do interior

O presidente começou a manhã no Congresso Nacional de Queimados, em Pedrógão Pequeno, frente a uma plateia onde estavam alguns dos feridos mais graves dos incêndios de 17 de Junho de 2017. Perante a pergunta hipotética dirigida pelo presidente aos responsáveis políticos, o próprio respondeu afirmativamente, mas com um aviso: “Os senhores estão aí e estão a fazer o que podem? Acho que os responsáveis estão a fazer. Todos. Mas provavelmente ainda não chega. É preciso mais.”

Falta caminho, mas o percurso está a ser feito. Marcelo voltou à região com a mensagem de que os responsáveis políticos estão a fazer tudo o que podem para esbater os problemas que as chamas deixaram a nu. Mas não basta fazer só o que é possível fazer agora. E deixa um aviso para o futuro: “Hoje estamos aqui. E daqui a um ano, quando estivermos a um ano das eleições, estaremos cá os mesmos com a mesma preocupação? Com a mesma mobilização? E no ano seguinte, em que não há eleições, estaremos os mesmos a retirar as lições do passado e a construir o futuro?”

Minutos antes, o presidente da Associação de Amigos dos Queimados, Celso Cruzeiro, tinha já feito um apelo à memória. Apontou que os problemas dos queimados nunca tiveram tanta visibilidade, mas lembrou também tragédias do passado. “Torna-se imperativo que este tema não volte a cair no esquecimento.”

Um esquecimento que, aponta Marcelo, deve ser corrigido e que começou com o pagamento de indemnizações “não apenas às vitimas mortais, mas aos feridos graves”, uma medida “sem precedentes em Portugal”. O pagamento das verbas representa o “assumir de uma responsabilidade colectiva”. Não apenas de uma responsabilidade sobre o momento dos incêndios, mas uma responsabilidade “com décadas, porventura com séculos de inacção ou de omissão”. Pelas assimetrias regionais, pelo que não se fez na floresta, mas também na prevenção e na capacidade de resposta, sublinhou.

Ao assinalar a tragédia de Pedrógão Grande, Marcelo fez questão de recordar também a de 15 de Outubro. Os dois são territórios diferentes, mas tendo em comum “ambos serem relativamente esquecidos, desconhecidos, compreendidos por esse outro Portugal”, a parte metropolitana do país. E esse país deve perceber que “sozinho não chega lá”. Ou seja, é um problema de coesão. “Estamos todos no mesmo barco. Quem está na proa não chega sozinho”. E se o lastro daqueles que ficam para trás nesse barco for tão grande” pelas desigualdades das condições de vida, prossegue, “o barco não chega lá”.

A viagem desse barco, se chegar ao destino, vai demorar. À saída da missa, António Costa disse mesmo que há questões que “levarão o seu tempo”. O primeiro-ministro voltou a identificar a revitalização do interior e a reforma da floresta, duas matérias que “ganharam visibilidade com esta tragédia”. Ao mesmo tempo que se faz esse “trabalho a longo prazo”, não se pode “deixar de dar resposta no imediato” a quem vive nesses territórios, sublinhou.

A natureza não consegue responder logo, mas vai recuperando o seu ritmo. “Morreram milhões de seres vivos” no ano passado, faz notar João Viola. “No outro dia fiquei muito feliz à noite. Trouxe a minha mulher para fora de casa e disse: vem ouvir, os grilos estão a cantar”.

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