O Museu da Culpa do Homem Branco

O branco de 2018 é culpado pelos actos do esclavagista de 1718 para que o negro de 2018 possa ser vítima da escravatura de 1718.

Ando há semanas entusiasmadíssimo a ler tudo o que é publicado acerca do polémico “Museu das Descobertas”. Descobri várias coisas. Em primeiro lugar, descobri que a palavra “Descobertas” está tão ultrapassada quanto as calças à boca de sino. Mas não só: se o museu se chamasse da Descoberta (no singular), da Expansão ou da Viagem (outras hipóteses faladas) o problema seria exactamente o mesmo. Aquilo de que os seus críticos andam à procura não é de um nome – é de um sentimento de culpa.

Eles batem-se pelo reconhecimento colectivo de todos os actos de violência cometidos pelos portugueses no último meio milénio contra ameríndios e africanos, como, aliás, já se viu na polémica com as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sobre a escravatura na ilha de Gorée, no Senegal, ou com a estátua do padre António Vieira no Chiado, rodeado de três crianças índias. O que esses críticos querem não é apenas a edificação de um novo espaço cultural com determinadas características, mas sim a criação de um novo espaço mental a que poderemos chamar o Museu da Culpa do Homem Branco.

Outra coisa que descobri: há nessa postura uma estranha mistura de catolicismo com judaísmo, demonstrando que certa esquerda progressista está a reentrar na Igreja, ainda que pela porta dos fundos. Nos activistas anti-Descobertas há uma insistência imensa na assunção de velhos pecados e na necessidade de contrição, associado a uma noção de culpa colectiva centenária que é tão bizarra quanto o orgulho nacional salazarista – como se algum de nós tivesse qualquer razão para se sentir responsável pelos actos de quem viveu há 300 anos.

E depois há essa coisa profundamente judaica que é sentir que a destruição do Segundo Templo ocorreu não há dois milénios, mas anteontem. Nos judeus, percebe-se: historicamente, foi o poder da religião e da memória comum que permitiu a preservação de um povo apátrida. No caso da escravatura, contudo, o excesso de memória e a sua permanente invocação serve apenas para fabricar artificialmente uma linha contínua entre o português do século XXI e o esclavagista do século XVIII.

Para quê? Simples: para permitir a vitimização histórica do português de origem africana no presente. O branco de 2018 é culpado pelos actos do esclavagista de 1718 para que o negro de 2018 possa ser vítima da escravatura de 1718. Mas como é difícil argumentar que a geração pós-25 de Abril andou de chicote na mão, ou que alguém, acima de idiota ou de skinhead (a bem dizer, são sinónimos), acha hoje em dia que a pigmentação da pele diz o que quer que seja sobre a inteligência ou a capacidade de um indivíduo, a estratégia passa por investir nos erros não assumidos do passado histórico português ou naquilo a que chamam “nano-racismos” (cito: “os pequenos, mas impactantes, gestos e atitudes racistas que pontuam linguagem e acção quotidianas”).

Mais uma vez, é a linguagem, e não os actos, que se torna campo de batalha. Nós não escravizámos, mas a nossa língua ainda escraviza. Estão em causa (palavras de Clara Silva) “expressões idiomáticas que carregam na sua história a escravidão, e que estão intrinsecamente carregadas de sentidos negativos e opressores”. “Negro” não se pode dizer – remete para a escravatura. “Mulata” não se pode dizer – remete para mula. E por aí adiante. A prova de que somos opressores está na fala. E assim como o homem branco é culpado mal abre a boca, também um museu inexistente é culpado só pela mera intenção de existir.

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