Kim sai de Singapura com elogios, um acordo vago e um bónus inesperado

Donald Trump acabou a cimeira de Singapura a chamar “talentoso” ao líder norte-coreano e a anunciar o fim dos exercícios militares com a Coreia do Sul. Acordo assinado pelos dois líderes prevê continuação do esforço diplomático, mas não dá nada como garantido.

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Kim pouco antes do regresso a casa,Kim pouco antes do regresso a casa Reuters,Reuters
Donald Trump, Kim Jong-un, Coreia do Norte, Estados Unidos, 2018 Cimeira da Coreia do Norte-Estados Unidos, Singapura, Presidente dos Estados Unidos
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Trump a entrar no Air Force One após o fim da cimeira,Trump a entrar no Air Force One após o fim da cimeira EPA,EPA
Donald Trump, 2018 Cúpula da Coreia do Norte-Estados Unidos, Estados Unidos, Pyongyang
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Aperto de mão histórico Reuters

Há uma imagem que irá seguramente figurar nos livros de História, quando a cimeira entre Donald Trump e Kim Jong-un for abordada: os dois líderes de países tecnicamente ainda em guerra a apertar a mão com várias bandeiras, lado a lado, como pano de fundo.

A cimeira de Singapura não teve o fim dramático e violento que muitos receavam e para o qual o próprio Presidente norte-americano chegou a alertar, quando há algumas semanas falou em abandonar a sala. O contrário aconteceu, na verdade. Os dois líderes trocaram sorrisos e elogios, passearam pelo hotel de luxo e estiveram reunidos quase uma hora apenas com tradutores. A simbologia foi forte, como esperado. Mas vai ser necessário mais tempo para saber se a recém-fundada relação entre os dois líderes tem uma base para se sustentar.

A jornada diplomática da madrugada de terça-feira salda-se num acordo que a maioria dos analistas qualificou como vago e extremamente parecido a documentos subscritos no passado – e que falharam. Mas foi o anúncio, já após a cimeira, de que os EUA vão deixar de fazer exercícios militares com a Coreia do Sul que constituiu a grande surpresa do dia e um bónus inesperado para Kim e para Pequim.

Foi já sozinho, durante a conferência de imprensa, que Trump revelou a suspensão das manobras militares conjuntas com a Coreia do Sul, dizendo tratar-se de uma enorme poupança de dinheiro. O Presidente norte-americano chegou mesmo a descrevê-las como “provocatórios e inapropriados”, fazendo eco das mesmas críticas que o regime norte-coreano atirava sempre que os exercícios tinham lugar.

O fim dos exercícios militares que ultimamente mobilizavam dezenas de milhares de soldados norte-americanos era uma exigência antiga de Pyongyang. A decisão coincide também com a prioridade da China, e também da Rússia, que defendiam uma estratégia de dupla suspensão: dos exercícios militares e dos testes de armas nucleares.

Não se sabe até que ponto Trump terá posto o aliado sul-coreano de sobreaviso. De Seul não houve qualquer reacção oficial imediata, e porta-vozes do comando militar dos EUA na Coreia disseram não ter sido alertados para qualquer mudança no calendário do próximo exercício, que está marcado para Agosto ou Setembro.

Neste contexto, o cancelamento dos exercícios não pode deixar de ser visto como uma vitória diplomática para Kim. “Espero, mas não estou confiante, que a Coreia do Norte dê passos que igualem as concessões que Trump já fez ao acabar com os exercícios militares na Coreia do Sul e ao oferecer legitimidade a Kim com esta cimeira”, disse à Reuters o ex-responsável pelo controlo de armamento da Administração Obama, Thomas Countryman.

O Governo chinês saudou os resultados do encontro e sugeriu que o regime de sanções do Conselho de Segurança da ONU contra a Coreia do Norte deve ser revisto, mostrando que futuros recuos diplomáticos dos EUA, no sentido de voltar a reforçar as sanções, vão encontrar resistência. “As acções do Conselho de Segurança devem apoiar e adaptar-se aos esforços das conversações diplomáticas em curso rumo à desnuclearização da Península Coreana”, afirmou o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Geng Shuang.

Em Moscovo, o Kremlin também fez um balanço positivo do encontro de Singapura, mas não deixou de avisar que “o diabo está nos detalhes”.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que a implementação do acordo alcançado entre Kim e Trump “irá requerer paciência e apoio da comunidade global”.

Um homem “talentoso” 

Durante a conferência de imprensa, Trump mostrou-se satisfeito com o que foi alcançado com Kim, e enumerou as vitórias concretas que diz ter conseguido, onde inclui a libertação dos três cidadãos norte-americanos presos, a demolição do local de testes nucleares em Punggye-ri, em Maio, e a promessa de regresso dos restos mortais de soldados e prisioneiros norte-americanos da Guerra da Coreia, que está prevista no acordo, ao mesmo tempo que as sanções são mantidas. Porém, estas são áreas de pouco valor para Pyongyang, que vê na normalização de relações com os EUA o seu grande prémio.

Em Singapura, Kim não só conseguiu aquilo que nem o pai nem o avô alcançaram em várias décadas, ao encontrar-se com um Presidente dos EUA, como ouviu rasgados elogios da boca deste. Em várias ocasiões, Trump disse que Kim “é muito talentoso”, ao mesmo tempo que desvalorizou quaisquer considerações sobre o estado dos direitos humanos no país. “É duro, mas é duro em muitos outros sítios”, afirmou.

Trump partiu para o encontro com Kim com o pressuposto de que o seu talento de negociador, que sempre faltara aos seus antecessores, lhe daria uma vantagem única sobre o seu interlocutor. “Penso que a nossa relação com a Coreia do Norte e com a Península Coreana vai ser muito diferente do que foi no passado”, afirmou Trump durante a cimeira.

Porém, os frutos das conversações reflectem que mesmo a abordagem radical do Presidente norte-americano embateu nas dificuldades que já eram conhecidas e que enfraqueceram esforços diplomáticos anteriores. O acordo assinado pelos dois líderes refere a “desnuclearização total da Península Coreana”, mas deixou cair as exigências que Washington tinha vindo a pôr em cima da mesa: um processo imediato, irreversível e verificável. A equipa negocial de Trump terá percebido que manter estes pressupostos iria comprometer o sucesso do encontro.

“Pyongyang precisou de 70 anos para alcançar uma capacidade nuclear que encara como fundamental para a sua segurança, e há limites para quão longe e quão rápido irá conseguir avançar num novo caminho”, escrevem no Politico Stephen Pomper e Jon Wolfsthal, especialistas em não-proliferação nuclear.

Boas vindas ao "clube nuclear" 

Ainda assim, o acordo falha em fornecer detalhes relevantes, como o de um horizonte temporal para que o processo de desnuclearização seja iniciado. “Donald Trump disse que não foi capaz de chegar a esses detalhes”, disse à BBC o analista da Chatham House John Nilsson-Wright. “Ora, essa é uma admissão extraordinária. Prova que, apesar de toda a sua publicitada capacidade negocial, ele não conseguiu garantir algo que os observadores mais sóbrios consideram essencial”, acrescentou.

A directora-executiva da Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares, Beatrice Fihn, descreveu a cimeira como “uma grande festa de boas-vindas [da Coreia do Norte] ao clube das potências nucleares”.

Do ponto de vista de Washington, as boas notícias são que a partir de agora estão abertas linhas de comunicação com Pyongyang, através das quais poderá ser possível construir uma relação de confiança que supere os obstáculos do passado. “A diplomacia não é um fim em si mesmo”, lembra o colunista do The Guardian Michael Fuchs. “Mas com a Coreia do Norte conversações regulares e de alto nível podem ajudar a reduzir as tensões, baixar as hipóteses de falhas de comunicação que possam levar a um conflito e manter abertas as possibilidades de se encontrar soluções.” O acordo prevê novos encontros brevemente entre o secretário de Estado Mike Pompeo e dirigentes norte-coreanos.

Apesar de ter enchido Kim de elogios, Trump admitiu que a promessa de desnuclearização que viu ser subscrita pelo líder norte-coreano pode deixar de valer nos próximos tempos. “Pode ter-se garantias de alguma coisa? Não se pode garantir nada.”

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