Que bem soa Piaf na voz de Viviane

Viviane retoma o cancioneiro de Édith Piaf em interpretações sentidas e das quais se apropria com alma. A apresentação do disco no Teatro de Trindade, em Lisboa, foi um êxito.

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Viviane no Teatro da Trindade JORGE BUCO
Concerto de rock, microfone
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Viviane no Teatro da Trindade JORGE BUCO
Concerto, Cantor e compositor
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Viviane no Teatro da Trindade JORGE BUCO
Concerto de rock, teatro musical
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O boné vermelho em Milord JORGE BUCO
Baixo, Cantor e compositor, Guitarra elétrica, Músico
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Viviane no Teatro da Trindade JORGE BUCO
Concerto de rock, música
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O microfone estendido ao público em Johnny JORGE BUCO

Apesar da forte concorrência buarquiana (era dia do terceiro de quatro concertos de Chico Buarque no Coliseu de Lisboa, todos com lotações esgotadas), Viviane encheu a sala do Teatro da Trindade com um espectáculo integralmente dedicado a Édith Piaf. E com esse duplo feito (Piaf não é voz que soe nas rádios de hoje) marcou pontos numa aposta coerente com a sua carreira: nascida em França, e singrando depois na pop em Portugal (primeiro nos Entre Aspas, depois a solo), quis homenagear uma voz da sua infância, que é também uma das grandes vozes da música francesa e universal. E se Viviane não é Piaf, essa personagem única e inimitável, nem quer parecê-lo, no disco e no concerto que lhe dedica soube honrar a sua música com interpretações sentidas e das quais se apropriou com alma. Se houvesse alguma coisa a apontar-lhe, seria o facto de em parte das canções se distanciar pouco dos originais; mas quando se lhe ouve, por exemplo, La vie en rose, essa sensação desaparece e o resultado é admirável. Aí, Viviane sobressai, encarnando a canção sem que a memória que dela temos diminua.

Vestida de vermelho vivo (cor que Piaf também usava, embora a sua imagem icónica surja insistentemente ligada ao negro), Viviane abriu o espectáculo com Sous le ciel de Paris, num ponto elevado do fundo do palco, e ainda a frio a sua voz não soou em toda a plenitude. Non je ne regrette rien, cantado já na ribalta, assinalou o “degelo”, que viria a completar-se num vigoroso e sentido Hymne à l’amour. Nessa altura, já a plateia estava conquistada para o que ali se propunha: uma revisitação da obra de Piaf numa voz que de algum modo lhe é devedora, abarcando todos os seus cambiantes, dos intensamente dramáticos aos mais alegres e vigorosos. E isso foi cumprido em palco, fazendo, por exemplo, Padam, padam anteceder Johnny tu n’est pas um ange e este Comme moi, La vie en rose e Mon Dieu. O embalo de valsa de Les amants d’un jour conduziu-nos a Mon manège à moi e à surpresa que Viviane prometera ao público, sem naturalmente a desvendar: a dado ponto da canção, sem que esta fosse interrompida, Édith Piaf surgiu projectada num ecrã a continuá-la no ponto em que Viviane a deixara; uma imagem jovial retirada de um vídeo a preto e branco gravado nos Estados Unidos, no Ed Sullivan Show (a data do vídeo, que está no YouTube e integra também o DVD L’Hymne à la Môme, que a EMI editou em 2003, ilude: não é de 1959 mas sim de finais dos anos 1940, inícios de 50). O efeito, sem qualquer truque que não o da justaposição de cantoras e música, tornou ainda mais calorosa e humanizada a homenagem.

Apresentados os músicos (Tó Viegas, guitarras acústicas; Filipe Valentim, piano; João Vitorino, guitarra eléctrica; João Gentil, acordeão; e Bruno Vítor, contrabaixo), ouviram-se ainda L’homme à la moto, Les flons flons du bal, L’accordéoniste, Milord (excelente, com Viviane a cantá-lo de boné vermelho na cabeça) e La foule, a fechar. Muitos aplausos e vários “bravo!” trouxeram Viviane e os músicos de novo ao palco. Primeiro para uma versão distintiva, só voz e acordeão, do belíssimo clássico Les feuilles mortes, de Prévert e Kosma; e depois para a repetição, com maior desenvoltura e calor, de Johnny tu n’est pas um ange (com a cantora a estender o microfone ao público e este a repetir “Johnny”) e La vie en rose, em excelentes interpretações.

Além de confirmar plenamente as capacidades interpretativas de Viviane, este trabalho dedicado a Édith Piaf tem também o mérito de trazer de novo à ribalta a chanson, que tão arredada tem andado dos focos mediáticos (pouco nos vai chegando de França, hoje, ao contrário do que sucedia na segunda metade do século XX). E aqui é impossível não traçar um paralelo com o empenho de uma outra cantora, Adriana Queiroz, ao retomar nos últimos anos Kurt Weill (no São Luiz, em 2014; e no Tivoli, em 2017), cuja obra, tal como a de Piaf, pode e deve ser dada a conhecer sempre a novos públicos. Porque há uma actualidade que em nenhum deles se perde e nalguns casos até se amplifica.

A Viviane, ficamos agora a dever o reencontro com o cancioneiro de Piaf, tal como a Adriana Queiroz ficámos a dever a evocação de Kurt Weill. Que não sejam os únicos.

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