O “rebelde” que mostrou que “a grande cozinha pode estar em qualquer lado”

Criado em New Jersey, Bourdain começou desde cedo a interessar-se pela cozinha. Casou-se e divorciou-se por duas vezes – e do segundo casamento, com Ottavia Busia, teve uma filha, agora com 11 anos. Morreu nesta sexta-feira, aos 61 anos.

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Rui Soares / Arquivo

Era um irreverente. De língua afiada e um estômago sedento de experiências. Muitas vezes divertido, outras tantas soturno. Sem medo de expor o que era, sentia ou pensava. Mostrava na televisão aquilo que era quando as câmaras se desligavam. “Quem gosta gosta. Quem não gosta not my problem”, recorda agora Henrique Sá Pessoa. Para lá da imagem entre o bad boy e o rock star, que transmitia nos livros e nos programas de televisão, é essa “honestidade” e “genuinidade”, aliada à capacidade de provar que a “grande cozinha pode estar em qualquer lugar”, que Anthony Bourdain deixa como legado.

O chef, escritor e apresentador de televisão norte-americano morreu nesta sexta-feira, aos 61 anos. Bourdain foi encontrado inconsciente pelo amigo e chef francês Eric Ripert no quarto de hotel em Estrasburgo, onde se encontrava a gravar um episódio para a série televisiva Parts Unknown, transmitida pela CNN. De acordo com o procurador francês Christian de Rocquigny du Fayel tratou-se de um caso de suicídio. “Anthony era o meu melhor amigo. Um ser humano excepcional, tão inspirador e generoso. Um dos grandes contadores de histórias, que tocou tanta gente. Rezo para que esteja em paz do fundo do meu coração”, reagia Eric Ripert momentos mais tarde no Twitter.

Depois de duas décadas a trabalhar em restaurantes, dos pratos lavados numa marisqueira em Cape Cod à liderança de cozinhas sofisticadas em Nova Iorque, Bourdain largou os tachos para se reinventar como escritor e, mais tarde, como apresentador de televisão. Não para esquecer a gastronomia, mas para revelar ao mundo os seus lados ocultos: por um lado, o negrume das histórias de “sexo, drogas e mau comportamento” escondidas na alta cozinha; por outro, a qualidade negligenciada das comidas mais humildes — e sui generis — dos quatro cantos do mundo.

“Se olharem para o que as pessoas comem, como comem, em que circunstâncias, o que cozinham, o que lhes dá prazer, aprende-se muito sobre essas pessoas. É uma maneira rápida, talvez a mais rápida, de conhecermos uma cultura”, defenderia Bourdain em 2011, quando dedicou a Lisboa um episódio do programa Não Aceitamos Reservas (No Reservations na versão original).

Um estômago de ferro

Era já a personalidade irreverente e humorada que mais se destacava em Bourdain quando o norte-americano foi trabalhar para o Brasserie Les Halles, em Manhattan, propriedade do português José Meirelles. “Pusemos um anúncio no New York Times e ele era um dos candidatos”, recorda o empresário ao telefone. “Gostei logo dele pelo currículo, mas principalmente pela personalidade.” Nas alturas de maior stress na cozinha, em que acabavam a “berrar” uns com os outros, Bourdain era uma “lufada de ar fresco”, conta Meirelles. “Reagia sempre com humor ou de forma sarcástica, criando um ambiente muito melhor.”

Ao telefone, o antigo patrão recorda a última vez que estiveram juntos. “Foi um almoço divertido em casa da minha mãe, em Celorico de Basto”, conta. Já tinham terminado as gravações do episódio sobre o Porto para o programa Viagem ao Desconhecido (Parts Unknown no original), filmado e transmitido no ano passado, e aquele era o único desvio ao programa. Tal como 12 anos antes, voltaram a ter uma matança de porco, experiência que Bourdain tinha vivido pela primeira vez ali e classificado como “verdadeiramente perturbadora”.

O estômago de ferro fazia parte da imagem que o catapultou para a ribalta televisiva. Raramente dizia que não ao que lhe colocavam no prato. De testículos crus de carneiro a olho cru de foca ou ovos de formiga. No Porto, o programa não foi tão desafiador, mas o suficiente para impressionar quem viajava com ele. Num dia em que “chovia torrencialmente”, recorda Avelino Freitas, presidente da Associação Profissional de Pescadores do Cais do Ouro, Bourdain e a equipa de filmagens fizeram-se ao estuário do Douro para pescar lampreia. “Estava mau tempo, um dos operadores de câmara recusou-se a entrar no barco e teve de ser substituído.” Bourdain, garante ao telefone Avelino Freitas, nunca vacilou.

“Mostrou-se sempre interessado e fez imensas perguntas.” Depois da faina, foi em casa de um pescador, Pedro Cachote, que a lampreia foi preparada. “Aqui usamos o método de lhe arrancarmos a pele. Uma pessoa da produção sentiu-se mal e desmaiou. Ele não, sempre a querer saber tudo.” E quando chegou a hora de comer, Anthony Bourdain ficou “fascinado”. Serviu-se uma vez, duas, três. “Adorou. Foi um almoço que passou de duas horas. E depois ficámos ali em amena cavaqueira.”

Para Sergi Arola, “haverá um antes e um depois de Anthony Bourdain” no que à divulgação da gastronomia diz respeito. “De todos os bad boys que fizeram programas de televisão, ele era o mais interessante e o mais diferenciador. Os programas dele são ferramentas maravilhosas para entendermos a gastronomia de cantos do mundo onde seguramente a maioria de nós nunca irá”, afirmou à Fugas em declarações à margem do festival The Art of Flavours, que está na decorrer no Funchal.

Para o chef do LAB by Sergi Arola (Penha Longa Resort, uma estrela Michelin), Anthony Bourdain “inventou uma maneira de comunicar a gastronomia”. “Num determinado momento da vida, procurei referências e encontrei-as em cozinheiros que já não se dedicavam à cozinha, como era o caso dele.” E continua: “Hoje não se pode entender personalidades como David Muñoz [restaurante DiverXo, Madrid, três estrelas Michelin] sem que se fale numa espécie de herança de Bourdain.” É por isso, diz Arola, que o legado de Bourdain é “valiosíssimo” e “irrepetível”.

Ljubomir Stanisic conheceu-o em Lisboa, quando Bourdain esteve na capital portuguesa para filmar o episódio de No Reservations, em 2012. “Foi um cozinheiro que nos inspirou a todos, que personificava aquela ideia de fazermos as coisas como achávamos que deviam ser feitas, sem regras nem medos, dentro e fora da cozinha”, recorda agora em comunicado. Para o chef do restaurante 100 Maneiras, Bourdain era um “rebelde com causas” e um dos primeiros a mostrar que “a grande cozinha pode estar em qualquer lugar, dos melhores restaurantes à casa mais humilde, fazendo com que o mundo se apaixonasse pela aventura de comer”.

É essa faceta de Bourdain que Henrique Sá Pessoa escolhe destacar. “Era uma pessoa por quem tinha imensa admiração. Tinha aquela atitude: ‘Eu sou assim. Quem gosta gosta. Quem não gosta not my problem.’” Para o chef do Alma, com quem Bourdain visitou o Mercado de Alvalade e “comeu tudo o que havia para comer” na Cervejaria Ramiro, era essa “honestidade e transparência”, esse “lado cool, mas ao mesmo tempo genuíno”, que diferenciava o chef norte--americano. “É uma grande perda para o mundo cultural gastronómico. O Bourdain era uma figura importante na divulgação da gastronomia mundial e ficamos mais pobres sem ele.”

A ribalta televisiva

Criado em New Jersey, Bourdain começou desde cedo a interessar-se pela cozinha. Quando aos nove anos viajou por França, pela primeira vez, num cruzeiro, já começava a associar a comida à descoberta. Numa entrevista ao Guardian, lembra como os pais o deixaram no carro, enquanto jantavam num restaurante, em Vienne. “Reagi pedindo ostras e pratos que eles consideravam repulsivos e tornando-me cada vez mais aventureiro nos meus gostos.”

Depois de dois anos na Vassar College, Bourdain desistiu da faculdade e entrou mais tarde no também conceituado Culinary Institute of America, terminando o curso em 1978. Em Nova Iorque passou por uma série de restaurantes, como o Rainbow Room, W.P.A. e o italino Gianni’s. Um dos seus maiores arrependimentos, contou à Newsweek, foi ter aceitado o cargo de chef muito rapidamente, em vez de procurar “posições baixas em excelentes restaurantes”. Chegou a chefiar, nos anos 1990, restaurantes de topo: primeiro o Sullivan’s, na zona da Broadway, e depois o Les Halles.

Casou-se e divorciou-se por duas vezes — e do segundo casamento, com Ottavia Busia, teve uma filha, agora com 11 anos. Há dois anos que namorava com a actriz e realizadora Asia Argento, uma das mulheres que acusaram Harvey Weinstein de assédio. No seguimento do escândalo em Hollywood e da disseminação do movimento #MeToo, o chef veio pronunciar-se contra o assédio sexual na restauração e a “cultura institucionalizada de meatheads [brutamontes] na área da restauração”.

Em entrevista ao Guardian, Bourdain revelou que ao longo da vida os seus gostos tornaram-se “cada vez mais simples”. “As comidas que realmente me fazem feliz, que têm um verdadeiro apelo emocional, são a simples taça de massa, noodles picantes vendidos no Vietname ou o rolo de carne da avó de alguém”, contou ao jornal.

“Na verdade não quero saber o que as pessoas dirão de mim quando morrer. Imagino que [o autor] Jerry Stahl faria uma história divertida — mesmo que não lisonjeadora — com detalhes tenebrosos”, disse o chef em 2017, em entrevista ao New York Times.

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