Como Sánchez percebeu a revolução feminista espanhola

Numa democracia consolidada com dezenas de mulheres assassinadas por homens todos os anos, o novo Governo, com onze mulheres na liderança de 17 ministérios , “é o da vitória do sofrimento e do fim do silêncio”. Um silêncio quebrado nos últimos anos e transformado há apenas três meses em revolta.

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A fotografia oficial, depois da tomada de posse no Palácio da Zarzuela Javier Lizon/EPA

Sexta-feira, 8 de Junho, a nova porta-voz parlamentar do PSOE, Adriana Lastra, anunciou que a proposta de lei para formar juízes em matéria de igualdade será a primeira iniciativa que o seu partido vai defender no Congresso. “Era um dos acordos do Pacto Contra a Violência Machista que o anterior Governo não cumpriu”, disse Lastra, explicando que, com esta modificação da Lei Orgânica do Poder Judicial, “todos os operadores jurídicos terão formação em violência de género”.

Às vezes, muitas vezes, as palavras não passam disso mesmo. Em Março, no Dia da Mulher, Espanha foi palco das maiores manifestações do mundo. E um homem, que também foram muitos a marchar, então líder do PSOE, na oposição, disse: “Vai haver um antes e um depois”.

Agora que é primeiro-ministro, Pedro Sánchez parece decidido a fazer de todos nós São Tomé. O anúncio de Lastra chegou menos de uma semana depois de Sánchez tomar posse, dois dias depois de ter um Executivo em funções.

Incrédulos (em lágrimas, como algumas jornalistas admitiram ter ficado), fomos percebendo quem era cada mulher que ele escolhia para o seu Governo, que pastas ocupavam; seria paritário, prometera, afinal são onze em 17, até à tomada de posse. Quarta-feira, 6 de Junho, dia em que a maioria jurou “manter o segredo das deliberações do Conselho de Ministras e Ministros”

Ninguém ficou indiferente ao 8-M, que os espanhóis chamam tudo assim, dia e primeira letra do mês. Não era possível, as espanholas não deixaram. Cidades pintadas de lilás, mulheres mais velhas a chorar de emoção por verem tantas estudantes que nunca tinham feito um cartaz nem saído à rua para o empunhar a seu lado.

“Foi transbordante, impressionante e emocionante. Tanto que é preciso deixar passar algum tempo para poder medir com precisão o que implicou este 8 de Março. A indignação lilás que encheu ruas de cidades grandes, médias e pequenas e aglutinou mulheres mais velhas, de meia-idade e jovens com um objectivo comum: dizer basta a todas as agressões que, na forma de desigualdade salarial, tecto de vidro ou violência machista – entre outras – nós, as mulheres, sofremos”, escreveu na altura a politóloga Cristina Monge.

“Quem ignorar o grito das mulheres vai equivocar-se”, afirmou Sánchez.

“A quarta vaga feminista nasce indignada: o pessoal é político”, era o título do texto de Março assinado por Monge no diário online infoLibre. Com formação em Sociologia e um percurso de investigação ligado aos movimentos sociais, Monge nota como “demasiadas coisas deste 8-M lembram o 15-M”, movimento social anti-austeridade nascido em 2011, conhecido como Indignados que levou ao nascimento do partido Podemos e o fim do bipartidarismo espanhol.

“Antecedentes que vêm de outras partes do planeta [em 2011 eram as revoltas árabes] e geram uma rede global – as greves que se celebram há três anos na Argentina, a convocatória em mais de 40 países, o fenómeno #MeToo... –, um movimento feminista constante e militante que manteve a chama todos estes anos […], o uso protagonista das redes sociais, a pluralidade de manifestos e símbolos, que significa que cada uma faz sua a reivindicação como quer, a ausência de lideranças pessoias e hierarquias, o apoio e a simpatia de 80% dos cidadãos e, sobretudo, a vocação inclusiva e de maiorias”, enumera Monge.

O então líder da oposição assistiu, ouviu e não ignorou. Há um passado, o de José Rodriguez Zapatero, chefe de Governo socialista entre 2004 e 2011, o primeiro em Espanha a converter o feminismo em política de Estado. É nesse passado que se inscrevem as acções actuais de Sánchez. Mas os tempos são outros e ele soube interpretá-los, ousando formar um Governo que envergonha os nórdicos, o Executivo com mais mulheres em toda a Europa, muito provavelmente, no mundo.

Não é só uma questão de números. É o peso de entregar toda a política económica a mulheres, fazendo o mesmo com a Defesa (Zapatero escolheu pela primeira vez uma mulher para a pasta, tornando-se icónica a imagem da entretanto falecida ministra Carme Chácon, grávida de sete meses, a passar revista às tropas) ou a Indústria. É a decisão de ter apenas uma vice-presidente (Carmen Calvo) e de esta ser a ministra da Igualdade, como garante que todas as políticas de todos os ministérios terão de agir de acordo com este desígnio, para além da entrega do papel de porta-voz do Executivo a outra ministra, a da Educação e Formação Profissional, Isabel Celáa.

Há as curiosidades e as inevitáveis piadas. A Real Academia Espanhola não aceita o termo “Conselho de Ministras” porque o feminino nunca faz plural, o que não impediu Carmen Calvo de usar a expressão “Conselho de Ministras e Ministros” na tomada de posse, repetida depois por oito das 14 ministras e ministros que se lhe seguiram no juramento constitucional perante o rei. “Que altos são”, ouviu-se no momento da fotografia oficial, com algumas ministras meio tapadas por Felipe VI e Pedro Sánchez. “Tenho de mandar elevar o estrado”, disse o rei.

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“Quem ignorar o grito das mulheres vai equivocar-se” Susana Vera/Reuters

Inversão nos estereótipos

Há a linguagem verbal e simbólica que a realidade acabará por encaixar. Houve os tweets replicados por muitos em que os cinco ministros nomeados eram alvo de considerações com recurso aos preconceitos tantas vezes repetidos quando em causa estavam mulheres em cargos de poder.

“Contei até cinco ministros. Espero que estejam ali pelo que valem, não para cumprir a quota masculina”, começou por escrever o utilizador com a conta Cronopia#YoSiTeCreo – um slogan tornado hashtag a propósito da sentença de violação do caso conhecido como La Manada, na qual os juízes condenaram os cinco acusados por abuso sexual continuado numa decisão denunciada pela ONU por “subestimar a gravidade da violação”, uma sentença conhecida em Abril, depois de dados da vítima, uma rapariga de 16 anos, terem sido divulgados e de esta ter sido alvo de ataques de carácter.

“Se a ideia era alegrar-nos a vista, poderiam ter ido buscá-los mais jovens”, escreveu também Cronopia#YoSiTeCreo. E mais: “A vantagem é que pelo menos já têm os filhos criados, não lhes teremos de perguntar como é que vão conciliar o cargo com a vida familiar”. Ou ainda, a propósito da escolha de Pedro Duque para ministro da Ciência: “Outro dado importante sobre o simpático astronauta é que é marido de Consuelo Femenía, diplomata de ampla experiência que certamente saberá guiar os primeiros passos de Pedro na vida política”.

Isto enquanto se escreviam perfis de ministras marcados por expressões habitualmente usadas para descrever homens. Como “negociadora implacável” para falar de Nadia Calviño, a nova ministra da Economia e Empresas, que regressa a Madrid depois de uma fulgurante carreira de 12 anos em Bruxelas, onde chegou a directora-geral para a elaboração dos Orçamentos Europeus, um novo cargo e uma tarefa de gigante que lhe tinha sido pedida pelo presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker.

“São líderes nas suas áreas”, disse Sánchez a propósito da sua equipa e sim, estava essencialmente a falar das mulheres, Calvino mas não só.

Há a especialista em pensões Magdalena Valerio, no Ministério do Trabalho, Migrações e Segurança Social; a Ministra da Justiça, Dolores Delgado, procuradora especialista em ETA que depois dos atentados de 2004 se especializou em jihadismo e que os colectivos de magistrados descrevem como “competente e qualificada”; Celáa, a ministra da Educação, com três décadas de experiência a desenvolver políticas educativas; ou a ministra das Finanças, María Jesús Montero, peso-pesado do PSOE (e logo andaluza, bastião da principal rival de Sánchez, Susana Díaz, que tinha em Montero uma das traves mestras do governo regional), a quem os rivais reconhecem “grande capacidade de trabalho, negociação e pedagogia política”.

A quarta vaga feminista, de que se começou a falar recentemente, surge da análise das anteriores feita pela filósofa feminista Amelia Valcárcel: a primeira, entre 1673 e 1792, reivindicou o acesso à educação; a segunda é a do movimento sufragista e vai de 1848 a 1948; e a terceira, que se iniciou há 50 anos (a do “mal-estar que não tinha nome) e se prolongou até hoje, partindo da ideia de que se perpetuavam e agravam as descriminações de género nas democracias onde o direito ao voto e à educação estavam reconhecidos e generalizados, uma vaga que obteve vitórias como as quotas, resume Monge.

Aberto o portão da história

A quarta, “a indignada”, a tal que estaremos a ver nascer, parte, segundo Monge, “do terror dos números da violência machista – cada mais visível nos meios de comunicação –, da constatação das desigualdades sociais e da continuação do tecto de vidro”. E acrescenta a politóloga: “Como se isto fosse pouco, estes insultos e esta violência machista permanentes exercem-se num cenário cada mais desigual na economia, mais precário no trabalho e mais decepcionante nas expectativas de futuro, o que faz com que as mulheres soframos estes problemas duplamente, como cidadãs de um mundo cada vez mais desigual, instável e precário, e ainda, como mulheres”.

Ana Pardo de Vera, chefe de redacção do jornal online Público.es foi uma das que admitiram ter derramado lágrimas, num texto intitulado Feministras onde assume o “politicamente incorrecto de uma jornalista felicitar com entusiasmo um presidente do Governo” e nota como “é difícil deixar escapar lágrimas” na sua profissão, repleta de tragédias diárias que é preciso contar, ainda por cima “com décadas de experiência”, como é o seu caso.  

“Hoje, 6 de Junho de 2018, foi um dia excepcionalmente importante para todas nós […]. As feministas lutam pela igualdade de todas e este executivo é uma vitória das feministas, da pressão social dos últimos anos e da revolução lilás do 8-M”, escreveu Vera. “Está tudo ainda por ver, mas a primeira porta, o portão da História abriu-se hoje. Sánchez captou a mensagem de mudança”.

As lágrimas, essas, caíram-lhe com tudo o que lhe veio à memória depois de “constatar que o Governo seria maioritariamente feminino e feminista”. “Os 39 feminicídios e assassínios em 2018 e os 99 de 2017, mais as centenas que conhecemos e desconhecemos”, “a vítima de La Manada e a lei e os legisladores injustos, a adolescente violada cujo sofrimento se projecta no de todas as mulheres que sofremos violência social, que havemos de ser a totalidade, em maior ou menos grau”, “as que falam e as que calam; as que denunciam e são insultadas, vexadas ou estigmatizadas”.

Para a jornalista, “este é o Governo da vitória do sofrimento e do fim do silêncio” como “o histórico Conselho de Ministras é das assassinadas às mãos de homens”, escreve. “A revolução era isto. E chegámos. E continuamos”.

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