Nova lei deve “proteger” anonimato de quem já doou esperma ou óvulos

Presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, que nesta quarta-feira vai à comissão parlamentar de Saúde, defende que os direitos dos dadores que já deram material devem ser protegidos e por isso pede que os efeitos do fim do anonimato sejam só aplicados a novas doações.

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Carla Rodrigues, presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida Miguel Manso

“Será uma tragédia permanecer nesta indefinição durante muito mais tempo”, alerta Carla Rodrigues, presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), sobre o vazio legal deixado pelo chumbo do Tribunal Constitucional a dois dos quatro pontos do artigo 15 da lei da Procriação Medicamente Assistida (PMA) — o artigo que estabelecia o anonimato dos dadores de esperma e óvulo (gâmetas). A responsável, que é ouvida nesta quarta-feira na comissão parlamentar de Saúde, defende que os direitos dos dadores que já deram material devem ser protegidos e por isso pede que os efeitos do fim do anonimato sejam só aplicados a novas doações. Sugere ainda que o que falta "afinar" em termos legislativos sobre a gestação de substituição possa ser resolvido posteriormente para não atrasar mais o processo.

Há um antes e um depois do acórdão do Tribunal Constitucional (TC) na PMA em Portugal?
Distingo duas partes do acórdão. Uma que diz respeito à gestação de substituição, e aí não se pode considerar que haja um antes e um depois porque a lei era muito recente e havia poucos processos em curso. E outra que se refere ao fim do anonimato dos dadores. Aí sim, há um antes e um depois. Todos os tratamentos de PMA com gâmetas ou com embriões doados neste momento estão em suspenso ou a avançar muito lentamente, porque aconselhamos, por prudência, os centros de PMA a não fazer tratamentos com gâmetas doados sem confirmarem com os dadores e beneficiários que o anonimato pode deixar de existir. Lendo o acórdão, não temos dúvidas de que a orientação do legislador terá de ser no sentido do fim do anonimato. Temos aqui um problema muito grave porque temos tratamentos que já foram feitos, crianças que já nasceram, e temos gâmetas e embriões criopreservados que foram doados no âmbito do anonimato e que se não for autorizado o levantamento do anonimato terão de acabar por ser destruídos.

Tem havido aqui uma dualidade de posições dos dadores. Como tem sido com os casais beneficiários?
Os casais beneficiários geralmente aceitam a possibilidade da perda de anonimato. Querem muito ter um filho, já investiram muito do seu tempo, dos seus recursos financeiros e todo o seu esforço físico e emocional nos tratamentos. Em relação aos dadores de gâmetas, as mulheres em geral aceitam, os dadores de esperma têm muito mais reservas. Se um dador diz que não autoriza, obviamente um centro não arrisca a fazer essa transferência.

Esse material terá de ser destruído?
Neste momento ainda não estão a ser destruídos gâmetas nenhuns. Temos tanta carência de gâmetas que nunca se partiria para uma destruição sem se saber em que vamos ficar em termos de legislação. O legislador pode legislar no sentido de acautelar as doações que foram feitas no âmbito do anonimato e é isso que queremos. E aí, esses gâmetas serão preciosos para a continuidade dos tratamentos. Se a lei nos disser que o anonimato acabou e que os dadores que já tenham doado não podem ver respeitada a sua vontade, não teremos outra alternativa que não a de destruir, porque não podem ser usados.

É nesse sentido que o CNPMA tem reunido com os grupos parlamentares, para que o fim do anonimato não seja aplicado para trás?
O nosso objectivo é precisamente esse. Para já, dizer-lhes da urgência em decidirem, porque há aqui vidas em suspenso. Será uma tragédia para a PMA em Portugal permanecer nesta indefinição durante muito mais tempo. Respeitamos a decisão do TC, podemos ou não concordar, e não estamos a discutir o direito das crianças saberem a sua identidade genética e a identidade civil do dador. O que estamos a tentar discutir e trazer para cima da mesa são os direitos dos dadores e dos beneficiários. Têm o seu direito à reserva da intimidade, da vida privada e da vida familiar. Já nasceram crianças, há dadores que já não têm uma palavra a dizer. Os seus direitos também têm de ser protegidos. Sobretudo, queremos alertar para a necessidade de estabelecer um período transitório que proteja o anonimato dos dadores cujos gâmetas estão em vias de serem utilizados em tratamentos. É por isso que queremos que o legislador perceba que esta alteração só deve ser aplicada nas futuras doações.

Quantos bebés nasceram em Portugal com recurso a gâmetas doadas?
Entre 2013 e 2016 nasceram 1649 crianças com gâmetas doados. Só em 2016 foram 527 crianças.

Qual o tempo de espera dos casais que recorrem ao Banco Público de Gâmetas para ter esperma ou óvulos doados para tratamento?
Não tenho esses dados, mas há listas de espera que foram substancialmente engrossadas no ano passado com o alargamento dos beneficiários [possibilidade de mulheres sozinhas ou casais de mulheres recorrerem à PMA]. Em 2016, antes do alargamento, tivemos um total de 1541 tratamentos feitos com gâmetas doados (centros públicos e privados). Em 2017, por exemplo com a utilização de gâmetas masculinos houve um aumento de mais de 100% dos tratamentos feitos. Em 2017 houve no total 2349 tratamentos com gâmetas doados, ou seja mais 808. O aumento de 2016 para 2017 foi brutal em comparação com a média de aumento que se regista desde 2013, que tem sido de 200 por ano.

Há um maior tempo de espera e esta situação do acórdão do TC veio agravar mais a situação. O que está em causa é a própria executabilidade do alargamento da lei dos beneficiários. O legislador entendeu que as mulheres sem parceiro e os casais de mulheres tinham direito a recorrer à PMA para terem um filho, mas se não há gâmetas no fundo é-lhes negado esse direito. É gravíssimo o tempo de espera em tratamentos de PMA porque há limites de idades.

O Banco Público de Gâmetas tem 31 dadores. Esta decisão do TC pode ditar o seu fim por falta de dadores ou levá-lo a uma existência exígua?
Isso seria uma tragédia. Acho que todos concordamos que haver tratamentos de PMA é fundamental. É uma forma de combatermos doenças, de ajudarmos famílias e mulheres a cumprir o seu projecto de vida, de aumentarmos a taxa de natalidade. A nossa Constituição da República prevê que o Estado disponibilize aos cidadãos tratamentos de PMA. Não termos um banco público de gâmetas é uma contradição. Só podemos depois recorrer a bancos privados e à importação de gâmetas ao estrangeiro.

Considera que perante este cenário o banco público está em risco?
Não quero pensar isso para já. Acredito que vamos encontrar uma solução legislativa. Mas o eco que temos é que com o acórdão e estas dúvidas, o contacto de potenciais dadores caiu muito. É muito preocupante.

Há possibilidade dos centros públicos fazerem importação de gâmetas doadas?
Não, os centros públicos recorrem ao Banco Público de Gâmetas. Se deixasse de existir o banco público, deixava de existir o tratamento de gâmetas doados no SNS. Nem quero pensar nessa possibilidade.

Tem referido que estes constrangimentos só podem ser ultrapassados com uma alteração legislativa.
Vou sugerir aos deputados que legislem com urgência a doação de gâmetas e que depois legislem com outra ponderação e outra calma a gestação de substituição. Porque se juntarem as duas alterações no mesmo diploma, receio que vá demorar tempo demasiado.

Não há o risco que com esta alteração a gestação de substituição não vir depois a não ter a alteração que precisa?
Tenho muitos receios e há muitos riscos. Estamos todos os dias a tentar encontrar soluções. Acredito que o legislador tem noção da responsabilidade que tem. Criou a gestação de substituição, o TC declarou-a constitucional, o que o legislador tem de fazer é afinar alguns aspectos da lei. Há uma dificuldade maior em resolver o problema da gestação do que em resolver o problema da doação de gâmetas, no meu entender. Se fosse tudo junto, tanto melhor. Tenho receio que os dois assuntos não estejam na agenda mais imediata do Parlamento. É por isso que não nos cansamos de chamar a atenção para este problema. Acho que o legislador vai ser responsável e vai, ainda nesta legislatura, resolver ambos os problemas.

Há aqui também uma profunda desigualdade que o legislador tem responsabilidade de por termo. Todas as outras mulheres e casais com problemas de fertilidade têm uma solução terapêutica para o seu problema. As mulheres que nasceram sem útero, que tiveram uma doença ou acidente que comprometeu seriamente a viabilidade do seu útero gerar uma criança são as únicas que não têm uma solução terapêutica legal para o seu caso. Estas mulheres têm de ter uma solução legal para o seu problema, para cumprirem os seus projectos de maternidade e paternidade.

Se alterações vierem do Parlamento forem no sentido de a gestante poder arrepender-se até ao nascimento do bebé, como indica o TC, será possível termos gestação de substituição em Portugal?
De todas as declarações de inconstitucionalidade do TC em relação à gestação de substituição, essa parece-me a mais grave. Se por um lado o tribunal diz que a gestação de substituição em termos genéricos não é inconstitucional, por outro lado, ao declarar essa inconstitucionalidade, praticamente que a inviabiliza. Tenho dúvidas que os casais nesta insegurança pretendam assinar um contrato com uma gestante que não está, no fundo, obrigada a cumprir esse contrato, porque quando tiver a criança pode decidir ficar com ela. Vejo que continue a ser viável com gestantes muito próximas e da máxima confiança dos beneficiários.

Tem sentido disponibilidade por parte do CDS e do PSD, tendo em conta que foram estes partidos que pediram fiscalização da lei?
Em relação à gestação de substituição, acho que o CDS e o PSD não irão avançar. Aqui a responsabilidade recairá sobre o BE e sobre o PS porque foram eles que estiveram na origem da lei. Em relação ao anonimato de dadores, a responsabilidade é de todos e aí o CDS e os deputados do PSD que pediram a fiscalização da constitucionalidade têm de se envolver neste processo e encontrar uma solução.

Empresas de “barrigas de aluguer” são “contrárias à lei portuguesa”

Algumas pessoas dizem que o acórdão do Tribunal Constitucional, que chumba a gestação de substituição, está a empurrar muitos casais para a ilegalidade, levando-os procurar contratos de “barrigas de aluguer” fora do país. Concorda?
Já antes isso acontecia e receio que agora os casais se sintam pressionados a encontrar uma solução fora daqui. O que aconselho é que não se precipitem e pensem bem. Espero que aguardem por uma solução legislativa em Portugal para que o possam fazer com todas as garantias e toda a segurança. É óbvio que neste momento estes casais estão vulneráveis. Não é por acaso que, pouco depois de ter saído o acórdão, já houve pelo menos duas empresas intermediárias a divulgarem os seus serviços [oferecem-se para arranjar “barrigas de aluguer” noutros países onde é legal pagar a mulheres para serem gestantes de substituição].

Ficou a saber-se no fim-de-semana que o Ministério Público está a investigar estas empresas. Houve algum pedido do CNPMA para que isso acontecesse?
Tivemos notícia de uma empresa que fez uma acção ou que pretendia realizar uma acção de esclarecimentos num hotel. Demos conhecimento ao Ministério Público porque isto é contrário à lei portuguesa e oficiámos ao Ministério Público para que investigasse. Ao termos conhecimento desta situação, uma violação grave à lei da PMA em Portugal, agimos como deveríamos, recorrendo ao único organismo em Portugal que pode investigar e que pode proibir a realização destas acções. Recebemos depois uma resposta que tinha sido encaminhado para o departamento competente e que estariam a inteirar-se da situação.

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