Portugal vai distribuir kits anti-overdose às equipas de rua

Portugal junta-se aos dez países que já garantem a distribuição domiciliária da naloxona, um antagonista opiáceo. Peritos dizem que é uma medida essencial para reduzir as mortes por overdose: 9138, em 2016, segundo o Relatório Europeu Sobre Drogas 2018.

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São dez os países europeus que já garantem a distribuição domiciliária de naloxona para diminuir as mortes por overdose Nélson Garrido

As 7929 mortes por overdose que se registaram na União Europeia em 2016 (9138, se incluirmos a Turquia e a Noruega) consubstanciam um problema de saúde pública que os diferentes países têm de encarar, avisa o Relatório Europeu sobre Drogas 2018, apresentado esta quinta-feira, pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência. Como? Através de uma aposta clara nas salas de consumo assistido e na distribuição directa aos consumidores de kits de naloxona - um medicamento usado para reverter os efeitos de uma sobredosagem com opiáceos.

Portugal, apesar de continuar a ser dos países com menos mortes por overdose – 27, em 2016, contra as 40 do ano anterior – deverá começar a distribuir a naloxona sob a forma de spray nasal às equipas de rua que actuam directamente junto dos toxicodependentes “dentro de poucos meses”, adiantou João Goulão, director do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e Dependências (SICAD).

“Já tivemos reuniões nas ARS [administrações regionais de saúde] para vermos qual a melhor forma de os fazer chegar às equipas de rua. Esta distribuição a técnicos com formação adequada é um primeiro passo que tem como perspectiva a distribuição aos próprios consumidores, familiares e amigos numa fase seguinte”, precisou ainda Goulão, para quem esta solução só não avançou já porque está ainda a ser avaliada pelo Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento. Ao PÚBLICO, o Infarmed confirmou que o pedido de comparticipação da apresentação da naloxona em solução para pulverização nasal "foi submetido em Maio deste ano", estando a decorrer o respectivo processo de avaliação.

Trata-se, para João Goulão, de satisfazer “uma velha reivindicação das equipas de rua que se sentem muitas vezes impotentes”. O director do SICAD garante que o investimento se justifica: “Nem que seja para salvar uma vida.”

Há anos que a naloxona é utilizada na forma injectável nas urgências hospitalares, por paramédicos e por pessoal de outros serviços que contactam directamente com consumidores de droga para reverter os efeitos de uma sobredosagem com opiáceos, impedindo a depressão do sistema nervoso central e do sistema respiratório que podem colocar a vida em risco. Em Novembro, a Comissão Europeia aprovou a comercialização de naloxona sob a forma de spray nasal para comercialização nos 28 Estados-membros. Mas já antes disso vários países tinham adoptado programas de naloxona para uso domiciliário, disponibilizando o medicamento directamente aos consumidores, familiares e amigos, juntamente com formação que os ajuda a reconhecer os sintomas de uma overdose.

Dez países já adoptaram

No ano passado, contavam-se 16 programas de administração domiciliar de naloxona a funcionar em dez países europeus. “A oferta deste medicamento, combinada com intervenções educativas e formativas nesta matéria, reduz a mortalidade provocada por overdoses”, concluíram os peritos europeus, para sublinhar que "pessoas que tiveram alta ou abandonaram programas de tratamento e os indivíduos recém-saídos da prisão constituem dois dos grupos que mais podem beneficiar” deste medicamento. Em países como a Estónia, França e Reino Unido a naloxona é distribuída aos reclusos recém-libertados da cadeia. E a Noruega vai arrancar ainda em 2018 com a sua distribuição nas prisões.

Quanto às salas de consumo assistido, nas quais o consumo de substâncias ilícitas se pode fazer em maiores condições de higiene e segurança, o relatório aponta os bons resultados das 78 salas que funcionam actualmente, num total de 56 cidades de seis diferentes países europeus, além da Noruega. Nelas, os toxicodependentes têm acesso a um vasto leque de serviços médicos e sociais. O consumo, que, noutras circunstâncias, se faria a céu aberto, passou a fazer-se “com menos risco de infecção e de morte por overdose”. Na Alemanha, onde tais salas funcionam desde os anos 1990, a legislação foi recentemente alterada para abrir estes espaços a consumos tidos como de menor risco, como as drogas fumadas ou inaladas.

Portugal prepara-se, de resto, para fazer arrancar as suas três primeiras salas de consumo assistido em Lisboa – duas fixas e uma móvel. Esta última, que está prestes a ir a reunião de executivo, deverá arrancar até ao final deste ano, devendo as unidades fixas entrar em funcionamento no início de 2019.

Ao contrário do que se verificou em Portugal, onde o ano de 2016 voltou a registar um recuo nas mortes por overdose, estas aumentaram 4% na totalidade dos países analisados no Relatório Europeu das Drogas 2018 – os 28 Estados-membros, a que se somam o país candidato Turquia e a Noruega. Das 9138 mortes reportadas, num problema que os peritos consideram estar subnotificado, 34% ocorreram no Reino Unido e 15% na Alemanha.

Droga mata quatro vezes mais homens

No geral, os consumidores de opiáceos na Europa correm um risco cinco a dez vezes maior de morrerem do que os seus pares da mesma idade e género. À volta de três quartos (79%) dos que morrem por overdose são homens, sendo que, no caso dos que têm 50 ou mais anos de idade, as mortes aumentaram 55%, entre 2012 e 2016, contra um aumento de 25% entre os que tinham entre 30 e os 49 anos de idade.

A Turquia, onde os mortos por overdose em 2016 duplicaram os registados em 2014, destaca-se por apresentar uma percentagem mais significativa de mortes na população mais jovem – a média etária das vítimas era de 31 anos, contra os 39 anos da União Europeia, onde o número de mortes nos grupos etários mais jovens se tem mantido estável.

Que a droga mata mais homens do que mulheres prova-o ainda o facto de a taxa de mortalidade entre homens ascender aos 34.7 casos por cada milhão de habitantes. É quase o quádruplo da taxa entre as mulheres (8,9 casos em cada milhão). Os dados também permitiram concluir que oito países apresentaram uma taxa de mortalidade por overdose acima das 40 mortes por milhão de habitantes: Estónia (132 mortes por milhão), Suécia (88 mortes por milhão), Noruega (81) e Irlanda e Reino Unido (70 mortes por cada milhão de habitantes).

A heroína ou os seus metabolitos, muitas vezes em combinação com outras substâncias, estão presentes na maioria das overdoses mortais reportadas na Europa. No Reino Unido, por exemplo, 87% das overdoses envolveram algum tipo de opiáceo. A par da heroína, começaram a surgir na generalidade dos países outros opiáceos associados a mortes como o tramadol e o fentanilo e os seus derivados.

Fentanilo é a próxima ameaça

Aliás, o reforço dos argumentos a favor da distribuição domiciliária da naloxona assenta precisamente no aparecimento cada vez mais expressivo no mercado europeu das drogas de derivados do fentanilo – um opióide sintético que chega a ser 50 vezes mais potente do que a heroína e que pesa muito na crise de opiáceos que se vive nos Estados Unidos da América, onde os derivados de fentanilo foram, durante um curto período de tempo, a substância mais presente na mortalidade por overdose. “A Europa não enfrenta um problema com a mesma escala, mas as mortes, e mesmo as overdoses não-fatais associadas a derivados não controlados de fentanilo, sublinham a importância de as autoridades se manterem vigilantes”, observam os peritos europeus.

Desde 2009 foram detectados 38 novos opiáceos sintéticos no mercado das drogas europeu, dos quais 13 em 2017. Seja na forma de vaporizadores nasais ou misturados com heroína ou cocaína, os derivados de fentanilo representaram mais de 70% das cerca de 1600 apreensões estimadas de novos opiáceos sintéticos comunicadas em 2016.E, no ano passado, foram comunicados dez novos derivados de fentanilo através do Sistema de Alerta Rápido da União Europeia. Apontada como causa da morte do cantor Prince, o fentanilo já foi detectado em encomendas postais descaracterizadas remetidas para Portugal, como adiantou João Goulão, que, em Janeiro, se dizia preocupado com a possibilidade de Portugal começar a ser afectado pelo “boom” de expansão dos derivados deste opióide.

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