Como brincar com bonecas agrava o risco de pobreza na velhice

Mais escolarizadas do que os homens, as mulheres portuguesas estão em maioria na engenharia, na medicina, na magistratura. Mas, seja qual for a profissão, ganham sempre menos. A desigualdade de género, que chega a atingir os 600 euros, inculca-se no jardim-de-infância e redunda depois numa maior exposição à pobreza.

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Entre os 60 e os 65 anos, são as mulheres que mais abandonam precocemente o trabalho Reuters/IVAN ALVARADO

Como é que o facto de nos jardins-de-infância as meninas brincarem com cozinhas e os meninos com foguetões contribui para a persistência de desigualdades penalizadoras para as mulheres e ajuda a que estas cheguem à velhice com reformas mais baixas e mais expostas ao risco de pobreza? A resposta está no estudo Igualdade de Género ao longo da Vida, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que é apresentado esta segunda-feira e que conclui, por exemplo, que, logo à chegada ao mercado de trabalho, as mulheres entram a ganhar menos e são mais frequentemente contratadas em regimes precários, apesar de se apresentarem mais escolarizadas e com currículos mais completos.

“As diferenças salariais são brutais e absolutamente chocantes. Nas profissões menos qualificadas, chegam a ultrapassar os 200 euros, o que é muitíssimo porque estamos perante salários miseravelmente baixos”, adiantou Anália Torres, socióloga e coordenadora do estudo que aponta ainda disparidades salariais a rondar os 600 euros entre os representantes do poder legislativo e de órgãos executivos. À discriminação feminina no trabalho pago – as mulheres jovens têm um salário médio/hora de 5,8 euros, contra os 6,1 euros auferidos por eles – soma-se a sobrecarga nas tarefas do “cuidar”, da casa e dos filhos, às quais as mulheres dedicam o dobro do tempo.

A discriminação e a sobrecarga feminina nos cuidados com os filhos e com a casa não é novidade, num país que remunerou sempre mais a função produtiva do que a reprodutiva. O que este estudo faz é mostrar, quantificando, que as desigualdades se impõem logo no início da idade adulta, entre os 15 e os 29 anos de idade. Aliás, este estudo distingue-se dos restantes porque, ao longo de mais de 400 páginas, sete investigadores mediram as desigualdades no arco temporal 2000-2016, numa perspectiva comparada com outros países europeus, em três diferentes fases da vida: até aos 29 anos; entre os 30 e os 49 anos de idade, altura em que homens e mulheres (mas mais as mulheres) correm entre o trabalho pago e os cuidados da casa e dos filhos, por isso chamada “rush hour of life”; e, por último, na fase tardia da idade activa, entre os 50 e os 65 anos. 

Apesar das gigantescas conquistas do século XX – em que, por via de inovações como a pílula contraceptiva, mas também de factores como a emigração masculina e até mesmo das guerras que empurraram as mulheres para fora do reduto doméstico e permitiram “a massificação dessa possibilidade de homens e mulheres terem vidas mais parecidas”, conforme sublinha Anália Torres –, as desigualdades de género persistem: “Quando comparamos os salários, as diferenças são brutais.” Na rush hour of life, as disparidades salariais agudizam-se: elas ganham em média 10,3 euros/hora e os homens 11,4 euros. E, a partir dos 60 anos de idade, ainda mais: elas ganham em média 8,93 euros/hora contra os 12,88/hora auferidos pelos homens. Logo, prossegue a investigadora, “é bom que reconheçamos que o problema existe e que não é só na Arábia Saudita”.

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Engenheira, mas sem negligenciar a casa

A diferença é que as desigualdades se tornaram mais subtis, reproduzindo-se num pano de fundo onde subjaz uma “desvalorização simbólica e material daquilo que as mulheres fazem e produzem e das suas capacidades, especialmente na dimensão produtiva e no espaço público”. E, mais do que isso, tendem a agravar-se ao longo da vida. “Uma mulher começa [entra no mercado de trabalho] logo em desvantagem, chega à fase da ‘rush hour’, ganha menos e continua a ser duplamente penalizada com o dobro do trabalho não pago e depois, na fase tardia, abandona o mercado de trabalho, não porque ficou desempregada ou chegou ao fim da carreira contributiva, mas porque tem de tomar conta dos pais ou dos netos. Descontou menos, porque ganhou menos, e acaba por ter uma reforma muito baixa também porque teve uma carreira contributiva mais curta.  Logo, a probabilidade de as mulheres caírem na pobreza – e mesmo que não caiam, de terem um ganho suficiente para terem uma vida com dignidade – é muito maior.”

E onde é que tudo isto começa? No jardim-de-infância. “No pré-escolar, no recreio e na sala de aula, meninos e meninas vão ajustando o seu comportamento a uma visão normativa de género que também acentua diferenças e assimetrias entre géneros”, lê-se no estudo. “As pessoas tendem a achar que isso de haver brinquedos para meninas e brinquedos para meninos é uma questão menor, mas não: qualquer criança vai querer criar um sentido de pertença e adequar-se àquilo que acham que esperam dela, a assumir o seu papel em função do estereótipo. E se a mensagem que lhe passam vai no sentido de que o natural é que as meninas brinquem com cozinhas e com bonecas ela interioriza e incorpora, consciente ou inconscientemente, a ideia de que é natural serem elas a ocupar-se das tarefas domésticas, mesmo que aspirem a ser engenheiras ou físicas”, explica Anália Torres.

Não surpreenderá tanto assim a constatação de que, entre os 15 e os 29 anos, Portugal bata, juntamente com Espanha, o recorde da assimetria entre o tempo que eles e elas investem no trabalho do cuidar – da casa e dos filhos: elas dedicam em média 32 horas por semana à casa e à família e eles apenas 17 horas. E esta aculturação adquirida na infância revela-se igualmente no momento de contratação para um emprego.

“Em circunstâncias de igualdade de currículo, homens e mulheres contratam preferencialmente homens. Apesar de elas chegarem ao mercado de trabalho mais escolarizadas e mais preparadas do que eles, no momento da contratação a mulher é vista como potencialmente menos disponível para o trabalho. Mesmo que não haja filhos, a mulher será potencialmente mãe. É como se levasse uma marca na testa, enquanto o homem, mesmo tendo família, é encarado como alguém mais disponível porque tem um background de apoio, quase sempre uma parceira, para lhe fazer o trabalho doméstico.

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Mulheres correm mais no meio da vida

Isto ocorre apesar de a mobilidade educacional ascendente ser em Portugal “fantástica”. Sobretudo para elas. “Somos dos países da Europa que têm mais mulheres cientistas e em áreas como a informática e a matemática. E a maioria dos médicos não são médicos, são médicas. A maioria dos juízes não são homens, são mulheres. Ainda assim, vive-se essa contradição brutal entre o que é o desempenho objectivo das mulheres no mercado de trabalho e uma certa inércia acerca da imagem do que é uma mulher”, precisa a coordenadora da Unidade de Sociologia do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, para voltar ao tema da disparidade salarial: “É admissível que uma engenheira, por exemplo, ganhe menos 600 euros do que um engenheiro? Não é.”

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No escalão etário seguinte, as portuguesas com filhos destacam-se por uma taxa de empregabilidade acima da média europeia: 80%, contra os 70% da União Europeia a 27. E, ainda assim, elas continuam a dedicar 18 horas por semana a cuidar da casa, contra as oito deles. Quanto ao cuidar da família, sobretudo filhos, a disparidade atenua-se ligeiramente nesta fase: eles passam 10 e elas 16 horas por semana. Na prática, “elas passam a vida a correr entre o trabalho e a casa”. “E como a mulher ganha efectivamente menos do que o homem, acaba também por achar normal assumir mais responsabilidades em relação à casa e aos filhos. Se o casal se dá bem, menos mal. Agora, se daí a alguns anos se separam, ela, que ficou agarrada e não foi promovida profissionalmente, fica prejudicada, enquanto ele está muito mais à vontade em termos de recursos.”

Esta divisão de papéis não é imperativo biológico nem algo a que o país esteja condenado. Como inverter o cenário? “Valorizando a dimensão do cuidar”, opina Anália Torres. “Mesmo em países como Portugal, que se destaca no contexto europeu pela ampla cobertura dos equipamentos de apoio à segunda infância, o aumento da participação masculina no cuidar, da casa e família, tem ainda investimento social e político a ser feito com o objectivo de promover a igualdade de género”, sugere o estudo. Na Suécia, por exemplo, a educação sexual chegou às escolas em 1958. “Isto ajuda a perceber por que é que os suecos têm indicadores de igualdade melhores do que os nossos”, reforça a socióloga.

Empurradas para os netos

Voltando ao caso português, quando o olhar dos investigadores se foca no grupo dos 50 aos 65 anos de idade, o que sobressai é que as mulheres abandonam mais precocemente o mercado de trabalho. “Quase um quinto das mulheres está nesta fase da vida principalmente dedicada às responsabilidades familiares”, precisa o estudo. Quando se poderia esperar que, emancipados os filhos, as mulheres poderiam reinvestir nos seus projectos profissionais, a realidade puxa-as para cuidar dos ascendentes idosos ou dos netos, o que desemboca numa taxa de emprego entre os 50 e os 64 anos de idade que não vai além dos 53,2%, no caso das mulheres portuguesas (64,4%, no caso dos homens).

É certo que “a pressão para sair no mercado de trabalho por exigências familiares “não é sentida por todas as mulheres da mesma forma”. As que passaram pela universidade, por exemplo, tendem a manter-se nos seus empregos durante mais tempo. Porquê? “São situações que podem corresponder a salários mais elevados e à externalização da prestação de cuidados.” Em média, porém, numa geração bastante menos escolarizada do que a juventude, o que prepondera é uma disparidade salarial entre eles e elas que se traduz no facto de elas ganharem em média 9,85 euros por hora contra os 12,19 euros auferidos por eles.

Tudo conjugado, chega-se ao fim da idade activa com um marcado aumento do risco de pobreza que “é mais penalizador para elas”, apesar das melhorias dos últimos anos: em 2005 o risco de pobreza das mulheres portuguesas nesta fase da vida era de 30,5%, em 2015 esse valor baixou para os 26%. E, tal como no jardim-de-infância, são elas quem mais se dedica à cozinha e às tarefas do cuidar. Quando se trata da família, por exemplo, elas despendem nisso 22 horas por semana e eles apenas seis. São 16 horas de diferença. Um recorde europeu.

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