Há famílias portuguesas que não aguentam mais perder tudo por causa do clima

Secas extremas e grandes incêndios florestais, como os que ocorreram em 2017, são fenómenos demonstrativos de como o clima está a mudar em Portugal. E isso está a afectar a vida das populações. Por isso, três famílias portuguesas juntaram-se a outras de vários países para exigir medidas.

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A família de Cunhal Sendim é uma das que apresentou acção contra as instituições europeias Rui Gaudencio

Há quem tenha perdido tudo para os incêndios, outros viram o seu modo de subsistência afectado, quer pelos incêndios, quer pela seca. Três famílias portuguesas do Sul e do centro do país decidiram dar um murro na mesa e juntaram-se a outras oito oriundas da Alemanha, França, Itália, Roménia, Gronelândia, Ilhas Fiji e Quénia, no movimento Pessoas pelo Clima para apresentar, nesta quinta-feira, no Tribunal Geral da União Europeia, uma acção legal contra o parlamento e conselho europeus. Segundo um comunicado da associação ambientalista Zero, acusam as instituições europeias de “não estarem a fazer tudo o que está ao seu alcance” para combater as alterações climáticas.

As alterações climáticas não são um fenómeno que apenas preocupa ambientalistas e cientistas. O seu impacto está muito presente no dia-a-dia das populações e Portugal é particularmente afectado. Quem vive do que a natureza dá não se conforma com a inacção. É a sua sobrevivência que está em causa.

Alfredo Cunhal Sendim, agricultor e porta-voz de uma das três famílias portuguesas que subscreveram a acção legal, referiu ao PÚBLICO a necessidade urgente de “mitigar as consequências das alterações climáticas” que estão a afectar famílias e modos de subsistência. “Temos de atenuar os efeitos do carbono na atmosfera, baseando a nossa intervenção na ciência e no conhecimento”, observa.

Gestor de uma exploração que pertence à sua família há mais de 100 anos, a Herdade do Freixo do Meio, localizada próximo de Montemor-o-Novo e onde se pratica agricultura tradicional, o agricultor deu conta do que tem passado nos últimos tempos: depois de um longo período de seca extrema e severa que durou quase três anos, seguiu-se, no espaço de uma hora, uma bátega de água de 120 milímetros que alagou a sua exploração. E, em apenas duas semanas, a precipitação foi equivalente à que ocorre num ano. Um tal volume de água foi “uma loucura” e causou uma enorme destruição. Por isso critica as “políticas viciadas” em práticas que são destrutivas do ambiente e diz ser urgente a tarefa de “restaurar o clima e corrigir a rota a que sectores económicos insistem em dar continuidade. A decisão não pode ter só carácter económico. O problema é também social”.

Caminhando para o centro do país, há quem não consiga esquecer o dia 15 de Outubro de 2017, tal como ninguém esquece o 17 de Junho. “Nesse dia de Outono, um incêndio de grandes proporções afectou o património da minha família”, recorda ao PÚBLICO Armando Carvalho, que viu a sua propriedade percorrida pelas chamas.   

“Temos de reconhecer que não estamos preparados [para enfrentar situações como a que teve lugar na região centro]”, acentua este engenheiro silvicultor. Diz ter subscrito a acção apresentada no tribunal para “chamar a atenção das instituições europeias para um problema que não se circunscreve apenas aos incêndios”. Há vários fenómenos extremos, como as secas, que destroem modos de vida.

“Estamos a falar de segurança de pessoas e bens”, acentua Armando Carvalho, proprietário de um terreno com 12 hectares onde há três décadas plantou um carvalhal que foi atravessado pelo fogo. “Porém, estamos no final de Maio e as árvores estão de novo a rebentar”, acrescenta, como nota positiva. Mas à sua volta observa uma desoladora paisagem composta de “palitos [eucaliptos e pinheiros] enegrecidos pelo fogo”, sem vida. A realidade está exposta e não era difícil antecipar há décadas. “Admiti, então, que o desastre ia acontecer, mas numa dimensão que não era possível imaginar”, constata o técnico florestal, convicto que se está “a evoluir muito mais rapidamente e para além daquilo que os políticos pensam que somos capazes de enfrentar”. As alterações climáticas atingiram uma dimensão que “nunca se tinha verificado”.

Também no centro do país, a família Conceição vive da apicultura. As mudanças ecológicas afectam a floração, há mais pragas, o extremo calor derrete os favos de cera. Em 2017 perderam quase 60% da sua produção. “Além disso, a quantidade de tempo necessário para cuidar das colmeias e das abelhas quadruplicou, e têm de envolver mais pessoas para manter o negócio. Como resultado, a ocupação da família está prestes a tornar-se insustentável para proporcionar sustento a esta família”, relata a Zero.

Por tudo isto, na queixa que deu entrada no tribunal, as 11 famílias questionam “a legitimidade de actos legislativos da União Europeia” para reduzir emissões de gases com efeito estufa e cumprir o Acordo de Paris.

A Zero explica que a actual meta de redução de pelo menos 40% nas emissões de carbono até 2030 é “inadequada” em relação à necessidade que persiste na prevenção dos efeitos resultantes das alterações climáticas.

A acção que deu entrada no tribunal defende que “qualquer redução aceitável deve ser substancialmente superior a este valor até 2030”.

Por toda a Europa, as associações de defesa do ambiente já apelaram junto do parlamento e do conselho europeus para uma redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) até 2030. A Zero considera que uma tal meta é decisiva “para evitar as piores consequências das alterações climáticas, no sentido de garantir a sobrevivência das comunidades e ecossistemas em todo o mundo”.

Tal como as portuguesas, as famílias que recorreram ao tribunal da União Europeia assumem que já estão sob ameaça dos impactos das alterações climáticas: as que vivem em pequenas ilhas, ao largo da costa alemã do mar do Norte, são afectadas pela subida do nível do mar e a ocorrência de tempestades. No Sul da França, tal como em Portugal, suportam-se ondas de calor e secas cada vez mais frequentes. A subida da temperatura chega aos Alpes italianos, onde as comunidades já se debatem com a ausência de neve e gelo e as suas consequências na actividade turística. Na região dos Cárpatos romenos, a agricultura e o pastoreio, meios de subsistência e ocupação tradicional, também são prejudicados por temperaturas mais elevadas e pela seca que se estendem ao Norte do Quénia, fustigado por ondas de calor e a desertificação física e humana.

Todas estas famílias envolvidas na acção apresentadas no tribunal da União Europeia são acompanhadas por associações de defesa do ambiente – em Portugal é o caso da Zero –, advogados e cientistas. 

A Climate Analytics, um grupo de reflexão sobre ciência climática, fornece a informação científica de apoio ao processo judicial de forma a dar elementos sobre o modo como as famílias são afectadas pelas alterações climáticas e de que modo é possível reduzir as emissões de gases com efeito de estufa. A associação ambientalista alemã Protect the Planet tem a seu cargo os custos relacionados com o processo.

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