Movimento quer mudar todos os serviços de apoio do Estado no Interior

Mudanças radicais nos incentivos ao investimento, baixa nos impostos sobre os lucros, transferência de 25 serviços públicos para fora de Lisboa; o Movimento para o Interior mostra esta sexta-feira o seu programa “radical” a Marcelo e a António Costa. O combate contra os desequilíbrios do território subiu de tom.

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Funcionários que aceitassem deixar Lisboa teriam um subsídio equivalente a um salário anual, pago em três prestações MARCO DUARTE

Se o Governo aceitar as propostas “radicais” que o Movimento pelo Interior apresenta esta sexta-feira, em Lisboa, dentro de dois anos pelo menos 25 serviços públicos com mais de 100 funcionários instalados na capital vão começar a mudar de sede e de endereço. Se o programa for aceite e cumprido pelo Governo, em 2032 pelo menos 2500 quadros do Estado abandonarão as suas rotinas quotidianas e estarão a trabalhar na Guarda, em Castelo Branco ou em Beja. E para esvaziar eventuais críticas e recusas como as que se manifestaram quando o Governo anunciou a mudança do Infarmed para o Porto, o Movimento propõe compensações para os funcionários que aceitem a mudança: um “subsídio equivalente a um salário anual” pago em três prestações; o tempo de contagem para a progressão na carreira majorado em 25%; um aumento dos subsídios de parentalidade e de abono de família; a majoração do tempo de serviço para efeitos de aposentação em 10%. E para garantir conforto na mudança, o Movimento propõe um financiamento de 200 milhões de euros para habitações destinadas aos funcionários migrantes.

O conjunto de 24 acções propostas pelo Movimento para corrigir as graves assimetrias regionais do país, porém, não se fica por aqui: no relatório final que será revelado esta sexta-feira em Lisboa, numa cerimónia que conta com as presenças do Presidente da República, do primeiro-ministro e do presidente da Assembleia da República, contempla ainda a obrigação de todos os novos serviços do Estado serem instalados no interior e a mudança dos “backoffice” dos departamentos públicos para as cidades médias que ficam no mapa oficial dos “territórios de baixa densidade”. Num prazo de seis meses, todos os departamentos deverão fazer o inventário destes serviços e prepararem-se para a sua transferência, propõe o Movimento.

Meio ano depois de ter sido lançado, o Movimento pelo Interior mostra serviço e fá-lo através de um pacote de acções que os seus próprios mentores definem como “radicais”. José Silva Peneda, escolhido pelos seus pares para ser o relator do documento, explica: “É deliberado. Há de facto um radicalismo nas medidas. Com conversa mole não vamos lá”, diz. O programa evita abordar grandes reformas em sede fiscal ou mexidas na sempre sensível arquitectura da organização administrativa do Estado. As suas medidas, “sendo arrojadas não desequilibram o orçamento, pelo contrário”, observa Álvaro Amaro, presidente da Câmara da Guarda e da Associação dos autarcas do PSD, também membro do Movimento. Mas as acções que defende dão corpo ao “mais profundo, completo e radical programa em favor da correcção dos desequilíbrios territoriais do país”, reconhece Silva Peneda.

Desenhado, estudado e definido por especialistas e debatido em várias cidades do interior, o programa de acção do Movimento focou-se em três áreas temáticas coordenadas por Miguel Cadilhe, nos impostos, Pedro Lourtie, na educação, e Jorge Coelho nas “medidas para a ocupação do território pelo Estado”. “Quisemos dedicar-nos em exclusivo a questões que mudam o quadro de fundo”, diz Silva Peneda. “Nós estamos preocupados com custos de contexto como, por exemplo, os das portagens, mas achámos por bem dar prioridade a acções e medidas estruturantes”, completa Álvaro Amaro. Num modelo que contrasta com as mais de 160 medidas elencadas pela Unidade de Missão para a Valorização do Interior, nomeada por este Governo, o relatório final do Movimento limita-se a elencar a série de 24 acções num documento sintético e fácil de digerir.

Os estudos, análises e constatações que as fundamentam encontram-se num documento anexo com mais de 50 páginas, onde os exemplos, as críticas ao modelo actual e as propostas são justificadas. Se os anexos que mostram o contexto das “medidas para a ocupação do território pelo Estado” são pobres em detalhes e em assertividade (ao contrário do capítulo de Miguel Cadilhe, que chega a redigir as alterações aos diplomas fiscais em vigor), o relatório final é bem mais ambicioso e concreto. “As personalidades que as assinam têm um passado e podem dizer aquilo que pensam”, nota Fontainhas Fernandes, reitor da UTAD. Quer no relatório, quer na sua fundamentação repete-se um objectivo primordial: travar a desertificação humana do interior através da criação de empregos privados e da transferência de funcionários públicos.

Para esse fim, o capítulo assinado por Miguel Cadilhe é crucial. De acordo com a sua proposta, o Movimento reclama a aplicação de uma taxa IRC de 12.5% para todas as empresas e não apenas as que apresentem uma matéria colectável até 15 mil euros, como agora. Mais radical é a proposta que concede o exclusivo ao interior dos benefícios fiscais para investimentos acima dos 25 milhões de euros, bem como de outros incentivos ao investimento previstos no actual regime fiscal. Cadilhe, porém, não se ficou por aqui. As ajudas estatais com finalidade regional devem aumentar no interior de 25 para 45% e os limites na dedução à colecta dos investimentos feitos pelas empresas do interior na investigação e desenvolvimento devem ser extintos. Depois, de forma a estimular a migração de quadros altamente qualificados para as empresas, sugere-se que só no interior se deve aplicar a taxa especial de 20% de IRS para trabalhadores com esses atributos. Algumas destas medidas requerem a aprovação de Bruxelas, mas Silva Peneda, acredita que não será por aí que o programa pode ficar comprometido.

Na área da educação, do ensino superior e da ciência, o Governo tratou já esta semana de dar resposta a uma proposta inscrita no Movimento: a discriminação positiva das universidades do interior no número de vagas abertas a cada ano. Para o Movimento, o objectivo é garantir que, a prazo, as universidades do interior aumentem a sua população de alunos de 11% para 25% do total nacional - o Governo prevê para o próximo ano um corte de 5% nas vagas de Lisboa e do Porto, quando o Movimento inclui nesse processo outras universidades do litoral, como as do Minho, Coimbra ou Aveiro. Para lá chegar, são propostos “incentivos na promoção de carreira dos docentes e dos investigadores”, a criação de marcas internacionais para as universidades e a melhoria das condições de residência e de apoio a alunos deslocados. Outra das acções contemplada aponta para a criação de “laboratórios colaborativos para a criação e estímulo ao emprego qualificado”.

Como corolário de todas estas medidas, o Movimento propõe ainda um programa operacional específico para o interior que entraria em vigor no próximo ciclo de fundos estruturais, que se iniciará em 2020. A sua principal finalidade seria “criar mecanismos de atracção e fixação de pessoas e a atracção de investimentos”. O Governo, porém, já se antecipou a esta proposta. Esta semana, em entrevista ao Negócios, o ministro Adjunto Pedro Siza Vieira anunciou que “o interior vai ter um programa específico de fundos europeus”.

As propostas em cima da mesa, reconhecem os seus subscritores, têm condições para suscitar discussão e abrir polémica. Álvaro Amaro diz-se “feliz” com os resultados conseguidos, mas reconhece que há medidas susceptíveis de gerar desconforto ou de melindrar interesses. “Há aqui muitas questões polémicas, claro que há”, concorda Silva Peneda. Ao limitar os incentivos para grandes investimentos aos territórios do interior, o Movimento retira às zonas mais dinâmicas da economia uma fatia importante dos seus trunfos para reforçarem as suas expectativas de desenvolvimento. Ao restringir os apoios para a atracção de quadros às empresas do interior, a proposta acaba por limitar a atractividade das empresas do litoral que trabalham em sectores de ponta. Mas, a questão politicamente mais sensível é a que se relaciona com a transferência de serviços para o interior.  

Depois de desenharem o mais vasto e arrojado pacote de mudanças em favor do interior, os promotores do Movimento remetem-se à expectativa. “Para avançar, é preciso muita coragem política”, reconhece Álvaro Amaro. E poder de influência que, reconhece Fontainhas Fernandes, “o interior não tem”. A iniciativa conta com um forte empenho do Presidente da República e com a abertura do Governo. Mas são esperadas críticas de associações empresariais, de universidades do litoral, de funcionários públicos de Lisboa ou dos que, no interior, podem um dia trabalhar ao lado de colegas de serviço que têm direito a contagens de tempo para reformas ou para progressão nas carreiras mais vantajosas. “Alguma coisa tem de se fazer”, diz Álvaro Amaro a este propósito. “Ainda hoje as pensões pagas aos alemães do Leste são mais baixas que as dos alemães do ocidente. Os funcionários públicos do interior acabarão por ser beneficiados porque, se as suas regiões se desenvolverem, terão possibilidade de uma vida melhor”, acrescenta o autarca.

Aconteça o que acontecer, o Movimento pelo Interior, uma organização “sem estatutos, sem presidente, sem pessoal e sem orçamento”, como a descreve Silva Peneda, vai extinguir-se. “Talvez nos reunamos uma vez ou outra para acompanhar os seus progressos”, admite Peneda. “Não será um Movimento eterno”, garante Fontainhas Fernandes, que espera ver o tema do interior debatido já nas eleições europeias “porque não podemos defender a coesão entre o Norte e o Sul da Europa e esquecer esse problema no nosso país”. Quem tem a palavra agora, porém, é o Governo. Ou os governos, uma vez que uma condição básica para o sucesso das medidas é, de acordo com os seus subscritores, que sejam aplicadas nas próximas três legislaturas.

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