A imagem e os seus fantasmas

Kiyoshi Kurosawa, cineasta japonês que a distribuição ainda não tornou presença regular em Portugal, num filme centrado no aparato do cerimonial.

Uma reflexão teórica sobre a natureza da imagem fotográfica
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Uma reflexão teórica sobre a natureza da imagem fotográfica
Kiyoshi Kurosawa, Tahar Rahim, Daguerrotipo
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Daguerrotype, Festival Internacional de Cinema de Toronto, Japão, Daguerreotype, Film
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Daguerreótipo, Kiyoshi Kurosawa, Olivier Gourmet
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Primeiro filme europeu, e mais precisamente francês, de Kiyoshi Kurosawa, cineasta japonês ainda pouco conhecido em Portugal (é apenas o segundo título da sua obra a chegar à distribuição) mas que é por certo um dos nomes mais importantes da cinematografia nipónica contemporânea. A sua especialidade, o seu género de eleição, é o fantástico “poético”, às vezes paredes meias com o “terror”, assente na sugestão, na cuidadosa pintura de ambientes, nas ressonâncias míticas das narrativas e dos climas que constrói — como sabe quem viu o seu outro filme por cá estreado (Rumo à Outra Margem) ou quem conheça os melhores títulos de uma filmografia que vem desde os anos 90 (Cure, Pulse, ou, entre outros, Sonata de Tóquio, que em Portugal não chegou às salas mas foi editado em DVD).

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O Segredo da Câmara Escura dificilmente enfileira junto do melhor de Kurosawa, como se esta “internacionalização”, este embate com culturas e territórios estranhos, neutralizasse alguns dos aspectos mais relevantes e estimulantes dos seus filmes. É mais esparso e mais contemplativo do que o habitual, e sobretudo mais solene, com uma dimensão cerimonial que parece ficar aquém do efeito pretendido. O cerimonial está, aliás, no centro do filme: é o cerimonial da fotografia “primitiva”, o cerimonial do pré-cinema, como se, filmando em França, Kurosawa tivesse querido homenagear as origens das artes da imagem tecnológica. Através da história de um fotógrafo (o “dardenneano” Olivier Gourmet) que obriga a filha (Constance Rousseau) a passar por longas sessões de imobilidade para lhe tirar fotografias segundo o vetusto processo do daguerreótipo (o que resulta num exercício sofredor, à beira do sado-masoquismo), é a imagem como “cerimónia” de sinal contraditório que impera: vida e morte, passado e presente, a fina diferença entre “matar aquilo que se ama” e “amar aquilo que morreu” — que tanto a ver com as incidências narrativas (o “fantasma” da falecida mulher da personagem de Gourmet, a paixão do protagonista “positivo”, Tahar Rahim, pela miúda que serve de modelo) como com uma reflexão teórica, até um pouco teórica em demasia, sobre a natureza da imagem fotográfica. Estilisticamente, todo este aparato cerimonial resolve-se num excesso de solenidade, vê-se mais a pose do que o clima que a pose devia invocar, há qualquer coisa que fica à porta e que não entra na “câmara escura” de Kurosawa. Decepciona um pouco, sobretudo tendo em conta as premissas, sem deixar de ser um filme interessante. Mas bom era que Kurosawa se tornasse um regular da distribuição portuguesa: têm-se dito maravilhas dos seus últimos dois filmes, estreados já depois deste O Segredo da Câmara Escura.

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