A feira de arte de São Paulo de A a Z (com L de Lula)

A 14.ª SP-Arte, que termina este domingo, levou a São Paulo quatro galerias portuguesas – e ainda uma quinta, que integra o programa paralelo com que a cidade costuma acompanhar a feira de arte. Uma visita final a uma edição entre a aceleração e o abrandamento, e com a sombra da prisão do ex-presidente a pairar ao longe.

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Numa manobra paralela à feira, a Galeria Jacqueline Martins recebeu obras de três artistas portugueses, através de uma associação com a Nuno Centeno, do Porto Gui Gomes/cortesia Galeria Jaqueline Martins

Aceleração ou abrandamento?

Entre as 130 galerias presentes na SP-Arte, a feira de arte de São Paulo que termina este domingo, quatro eram portuguesas. Duas delas, a Balcony e a Uma Lulik, novíssimos acrescentos ao circuito galerístico de Lisboa, foram incluídas no programa com curadoria especial de Luiza Teixeira de Freitas, o sector Solo, onde o aluguer do espaço é mais barato. A um dia do encerramento, o balanço que faziam ao PÚBLICO da sua participação não permitia dizer taxativamente se o mercado brasileiro está em fase de aceleração ou de abrandamento.

“Está a ser excelente o reconhecimento do Horácio Frutuoso e da Balcony”, resume, no seu stand dominado por tapetes brancos com frases impressas como “Eu vou ser rica”, o galerista Pedro Magalhães, comentando esta sua primeira participação na feira. Até aqui, acrescenta, vendeu uma peça, mas espera que as reservas se transformem em mais negócios nos próximos dias. As entrevistas da Globo e do Arte 1 (Grupo Bandeirantes), e a inclusão da galeria nas escolhas do curador Paulo Miyada, são outros sinais que refere como positivos.

Miguel Leal Rios, da Uma Lulik, reconhece por seu turno que arriscou ao trazer um vídeo como Unfinished Past (o único vídeo de toda a 14.ª edição da feira, sublinha Luiza Teixeira de Freitas): “A obra requer muita atenção, é densa e poética. A minha expectativa era obter contactos com instituições, como a Pivô ou o Videobrasil, coleccionadores e galerias que pudessem estar interessados neste tipo de trabalho.”

João Azinheiro, da Kubikgallery (Porto), que dividiu o espaço com outra galeria no programa geral da feira, afirma que já vendeu, sem entrar em detalhes. “Está a correr muito bem, [mas] ainda faltam dois dias decisivos para fechar vendas. O público está mais confiante e atento do que no ano passado.” Mais cauteloso, como de costume, Manuel Santos, da Galeria Filomena Soares (Lisboa), igualmente no programa geral, muito bem situado ao lado da David Zwirner, diz que “ainda é um bocadinho cedo para balanços”.

Marta Mestre, uma curadora portuguesa independente que trabalha entre Portugal e o Brasil, acha que “a reduzida presença de galerias internacionais tem vindo a tornar a feira uma operação doméstica e problemática”, acrescentando que também não concorda com os “expressivos incentivos públicos”, obtidos através da Lei Rouanet, a uma operação comercial como uma feira de arte. Mas Luiza Teixeira de Freitas contrapõe que “a visibilidade que os dois artistas [portugueses] mais jovens estão a ter é fulcral" e que uma feira "não é só vendas". Admite, porém, que "a feira abrandou", embora no sector Solo "galerias como a brasileira Cavalo ou a espanhola Espaivisor" tenham vendido "muito".

Condo, contra o vício das feiras

Por estes dias, a Jaqueline Martins, que alguns consideram uma das mais interessantes galerias paulistas, recebeu seis galerias estrangeiras e respectivos artistas no seu espaço de mil metros quadrados no centro de São Paulo. Entre elas, está a portuguesa Nuno Centeno, do Porto (não esquecer que a galeria Kubik também fez uma associação com a galeria Luisa Strina).

“O Condo acontece aqui em São Paulo pela primeira vez. Já aconteceu em Janeiro [na feira de arte Frieze] em Londres e está previsto que depois de esta exposição fechar, em Maio, nos recebam em Julho em Nova Iorque”, explica-nos a galerista, testemunhando a articulação que as instituições e as galerias da cidade procuram fazer com o calendário da SP-Arte. “Acho que este modelo de desenvolver em rede uma colaboração permite uma maior internacionalização. A gente não pode ficar viciada em feiras. Quero menos feiras na minha vida e mais colaborações.”

Nuno Centeno trouxe a São Paulo Carla Filipe, Mauro Cerqueira e Max Ruf, cujas obras ficam na Jaqueline Martins até Maio. A avaliação que faz da experiência de Londres é mais do que positiva: “Temos os clientes todos daquela galeria. Faço a Frieze há quatro anos e nunca tinha sentido tanta rapidez nos contactos com os coleccionadores.”

A partir de Setembro, Nuno Centeno, que vai abrir um espaço novo no edifício da Cooperativa dos Pedreiros, com mais de mil metros quadrados, estará pronto para receber o seu próprio Condo.

Desconhecidos

“O público brasileiro precisa muito de informação”, diz o curador Jacopo Crivelli Visconti, um italiano radicado no Brasil que organiza o outro sector com curadoria especial na feira SP-Arte: com 13 galerias nesta 14.ª edição, o Reportório “quer preencher lacunas mostrando artistas que nunca tinham sido vistos ou que se tornaram invisíveis”.

O brasileiro Arnaldo de Melo, que está na galeria Sé, por exemplo, saiu do circuito artístico quando voltou ao Brasil, depois de uma intensa actividade em Nova Iorque e em Berlim, mas continuou sempre a trabalhar para si, conta o curador. “Ele nunca teve visibilidade nenhuma.” Tem um trabalho “que mistura a visualidade de uma transvanguarda italiana, associado a pintores como Clemente, ou de um neo-expressionismo, que nos faz pensar num Baselitz”, com uma atitude também conceptual, uma vez que pinta sobre convites para exposições de arte contemporânea da época em que vivia em Nova Iorque. Escondido como suporte para a pintura, vemos o anúncio da primeira exposição de Basquiat.

E se o público internacional que vem à feira conhece Christian Boltanski, já no Brasil nunca tinha sido exibida uma obra da série Monument (1987), aquelas que incluem luzes. “Há coisas que só vemos através do trabalho das galerias. É preciso reconhecer que o mercado também traz coisas boas.”

Lisboa, liaison para a Fortes D’Aloia & Gabriel

A Galeria Fortes D’Aloia & Gabriel (antiga Fortes Vilaça) acabou de abrir um pequeno escritório em Lisboa, no Largo Camões, para estar mais perto dos nove artistas que tem na Europa (ao todo são 40), entre os quais Julião Sarmento e João Maria Gusmão e Pedro Paiva, e ter uma base de apoio para as feiras europeias, explicou ao PÚBLICO Márcia Fortes no seu stand na SP-Arte. Em Maio, a tempo da ArcoLisboa, vão inaugurar no mesmo edifício uma exposição com 15 artistas intitulada Mundo vasto mundo, com obras de Robert Mapplethorpe, Adriana Varejão, Marina Rheinganzt ou Rodrigo Matheus. “Aproveitámos que a Maria Ana Pimenta queria regressar a Portugal e criámos este escritório para a nossa directora de vendas e de liaison.”

No stand da galeria, onde se podia ver um grande pastel de Paula Rego de 2015, já muita coisa tinha mudado nas paredes no segundo dia da feira: “O público está a responder muito bem. A feira está mais bonita do que no ano passado. Vendi tanto que o meu stand hoje é outro.”

Lula, o homem de que não se fala

Passada a perplexidade de aterrar na SP-Arte imediatamente após a prisão de Lula da Silva, a primeira coisa que os olhos de um visitante estrangeiro procuram é algo que lhe permita perceber a temperatura política do país. Se a instalação Brasília (2018), de Bruno Faria, se destaca no sector Solo, mostrando um carro decrépito que procura mostrar como a utopia moderna acabou podre, cheia de buracos, é difícil encontrar outros trabalhos tão directamente ligados à crítica da situação actual, vista por Bruno Faria como a falência do sistema político e do Estado.

Trabalhos engajados, mais ligados a uma reflexão sobre a discriminação racial, há na galeria A Gentil Carioca, do Rio de Janeiro, que mostra várias obras de artistas negros, como Arjan Martins, Pascale Marthine Tayou ou Maxwell Alexandre. Um Cigarro e a Vida pela Janela (2018) e Atlântico (2016) sairão da feira directamente para a Pinacoteca, o museu do estado, apontava orgulhoso o galerista Márcio Botner, que faz parte dos consultores da Miami Basel, a versão especializada na América Latina da feira mais importante do mundo, a Art Basel. “São obras que abordam a escravatura e a discriminação racial. Maxwell Alexandre, de 27 anos, tem muito presente na sua obra a cultura da favela.”

Pichagem, arte ilegal

No dia em que a SP-Arte abriu, não vimos na primeira página do jornal Folha de São Paulo as linhas reconhecíveis do pavilhão desenhado por Oscar Niemeyer em que a feira tem lugar. Em vez dele, a foto principal mostrava o edifício mais antigo da cidade, pichado com tinta vermelha de alto abaixo. No rescaldo da prisão de Lula da Silva, a frase “Olhai por Nóis” (Sic), escrita em letras garrafais na fachada do Pátio do Colégio dos Jesuítas, tomava múltiplos significados.

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No circuito montado para os visitantes profissionais da SP-Arte (e para os jornalistas internacionais), que vai das casas dos coleccionadores às instituições culturais, passando pelas galerias, já se dizia na quinta-feira que o grafito era obra do artista e activista paulista M.I.A. (Massive Ilegal Arts), autor de outras intervenções no Monumento às Bandeiras mas também num museu como o MASP. Pouco depois, João Franças, aka M.I.A, era detido, juntamente com uma mulher, dizendo a polícia que a acção de vandalismo, executada durante a madrugada, tinha ficado registada nas câmaras de vigilância. No sábado, uma carrinha da Guarda Civil Municipal já estava instalada em permanência na praça em frente ao monumento de 1554.

As fotos das pichagens, informam os jornais de São Paulo, estão à venda por dois mil reais.

Sinalética para conteúdos sexuais

Pela primeira vez na sua história, a SP-Arte introduziu uma sinalética para identificar conteúdos sensíveis como a nudez ou outros temas susceptíveis de serem considerados não adequados para os mais novos, explicou aos jornalistas a directora da feira, Fernanda Feitosa, numa iniciativa que pode ser vista como uma cedência à influência política do movimento evangélico, em crescimento no Brasil.

“Mas é apenas uma forma voluntária de classificação do que é exibido. Já tivemos performances nuas e nunca houve qualquer problema. Somos um país muito aberto. Não é uma proibição, diz apenas que determinado trabalho pode ter nudez ou um conteúdo sexual não adequado para uma certa idade. É só para evitar que os pais possam entrar com uma criança desprevenidos.”

A directora, que não receia que isso possa ser um passo em direcção à auto-censura de conteúdos, acrescenta que instituições como o MASP, o museu que é o bilhete-postal de São Paulo, também já o fizeram no ano passado.

Zwirner e as galerias internacionais

É para a galeria David Zwirner, de Nova Iorque, que se aponta em primeiro lugar quando se quer contornar o problema do diminuto número de galerias estrangeiras na SP-Arte (apenas 34 das 130) e das dificuldades que a legislação brasileira impõe à importação de obras de arte.

Mas apesar de a Zwirner, uma das mais importantes galerias do mundo, fazer 20 feiras por ano, não se pode dizer que não se esforçou na visita a São Paulo. Uma boa aposta na pintura mais figurativa (Francis Alÿs, Michaël Borremars, Lisa Yuskavage, Mamma Andersson), mas também em Josef Albers, que encontramos noutros espaços, talvez reflectindo um gosto brasileiro pela abstracção. Aposta-se igualmente em esculturas de nomes históricos como Donald Judd ou Dan Flavin.

Entre as internacionais, destaque para a mexicana Kurimanzutto, com as obras bordadas sobre tecido de Damián Ortega ou as tapeçarias de Gabriel Kuri. Na italiana Franco Noero, destacam-se a instalação de Jac Leirner, feita com papelinhos para enrolar cigarros e ocupando uma parede inteira, e quatro guaches de Tunga. Na Continua, brilham as bicicletas empilhadas da instalação de Ai Weiwei.

As galerias internacionais, designação que inclui quer as estrangeiras, quer as brasileiras que fazem feiras fora do país, estão todas juntas no segundo andar do chamado Pavilhão da Bienal, assim chamado por ser onde de dois em dois anos tem lugar a Bienal de São Paulo, o mais importante evento das artes plásticas brasileiras. E é grande a expectativa para este Setembro – diz o director de uma instituição cultural da cidade que não quer ser citado –, pois vai ter lugar um mês antes das eleições presidenciais, em que Lula, muito provavelmente, já não será candidato.

A Pivô, por exemplo, já alterou o calendário das suas exposições, explicou a directora Fernanda Brenner aos jornalistas, antecipando a mostra de Letícia Ramos para ter conteúdos mais políticos na rentrée.

O PÚBLICO viajou a convite da SP-Arte

Notícia alterada dia 16 de Abril, às 14h30, para acrescentar informação relacionada com galeria Kubik

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