Asifa, de oito anos, foi violada e morta – mas as maiores manifestações são a favor dos acusados

Criança de uma tribo muçulmana foi violada por três hindus no estado indiano de Jammu e Caxemira, num crime que está a ser visto como um teste aos “ideais modernos fundadores” da Índia.

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"A forma como o sistema de justiça, os media e o grande público reagirem à medida que o caso chega à atenção de todo o país – muito graças ao poder das redes sociais –, poderá definir a forma como a Índia irá reagir amanhã a casos semelhantes", diz o jornalista Samar Halarnkar SANJEEV GUPTA / reuters
Oito suspeitos estão a aguardar julgamento em tribunal
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Oito suspeitos estão a aguardar julgamento em tribunal DIVYAKANT SOLANKI / reuters
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Para além do crescimento da tensão religiosa e do nacionalismo com a chegada ao poder de Narendra Modi, há quatro anos, há muito que o país é confrontado com inúmeros casos de raptos, violações e homicídios de mulheres, em muitos casos menores de idade JAIPAL SINGH / reuters
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JAIPAL SINGH / reuters

No início do ano, Asifa viajou com a mãe até à cidade de Samba, no estado indiano de Jammu e Caxemira, para mandar coser o vestido que iria usar no casamento da prima, a 14 de Janeiro. Só que esse dia nunca chegou para Asifa. No dia 10 de Janeiro, enquanto cuidava dos cavalos da sua tribo numa floresta da região, a menina de oito anos foi raptada e levada para um templo hindu, onde foi violada por três homens durante quatro dias. No final, e depois de um dos atacantes, um agente da polícia, ter dito que queria violá-la uma última vez, Asifa foi estrangulada e espancada na cabeça com uma pedra.

Os pormenores do rapto, violação e homicídio de Asifa Bano estão descritos numa acusação de 15 páginas que a polícia de Jammu e Caxemira entregou num tribunal, no início da semana. Mas nem o facto de o crime ter sido cometido contra uma criança de oito anos, nem a afirmação da polícia de que mais de 100 testemunhas corroboraram a versão oficial foram suficientes para pôr toda a gente do mesmo lado – em Jammu, um grupo de advogados tentou barrar a entrada da polícia no tribunal da cidade, forçando os agentes a esperaram pela noite para entregarem a acusação a um juiz, que, mesmo assim, só a aceitou depois da intervenção do Supremo Tribunal; ao mesmo tempo, centenas de pessoas, entre as quais ministros daquele estado indiano, têm-se manifestado a favor dos acusados.

Tensão religiosa

O corpo de Asifa Bono foi encontrado no dia 17 de Janeiro numa floresta perto da cidade de Kathua, na Caxemira indiana. A criança fazia parte da tribo bakarwal, uma comunidade nómada muçulmana que partilha com outra tribo, os gujar, as florestas e montanhas da zona noroeste dos Himalaias, na região indiana de Jammu e Caxemira.

Há séculos que os bakarwal e os gujar seguem os seus rebanhos todos os anos, no Verão e no Inverno, em busca de dias menos frios. Mas, nos últimos tempos, com a chegada ao poder na Índia do partido nacionalista hindu Bharatiya Janata, aumentaram as acusações e recriminações de ambos os lados – grande parte da maioria hindu de Jammu e Caxemira quer impedir que os bakarwal e os gujar façam uso das florestas, e vê as medidas de protecção dessas tribos como uma tentativa de mudar a demografia da região; do outro lado, os líderes tribais dizem-se vítimas de perseguição por parte de extremistas hindus, que acusam de aterrorizar as suas populações para as expulsar da região.

Segundo a acusação, o rapto de Asifa foi planeado por Sanji Ram, um antigo funcionário dos serviços fiscais da Índia, de 60 anos, que terá encorajado o seu sobrinho, um menor de idade, a vingar-se dos bakarwal depois de uma troca de ofensas – o verdadeiro objectivo, segundo a polícia, era aterrorizar os bakarwal e levá-los a fugir da região.

O documento de acusação conta uma história de terror. O menor e o amigo raptaram a criança. Drogaram-na, violaram-na e fecharam-na o templo que é administrado por Sanji Ram, onde foi mantida amordaçada e amarrada até ao dia 13 de Janeiro. Durante esses quatro dias, foi violada várias vezes pelo sobrinho de Ram e pelo amigo deste, e também pelo filho do responsável pelo templo, que fora entretanto chamado para participar no crime.

No dia 13 de Janeiro à noite, Asifa foi estrangulada e espancada na cabeça com uma pedra, depois de um quarto elemento, um polícia corrompido por Sanji Ram, ter dito que queria violá-la uma última vez.

Para além dos quatro violadores e do homem que planeou o crime, outros três acusados estão também a aguardar julgamento na prisão – todos polícias a quem Sanji Ram terá pago para ocultarem e destruírem provas.

“Momento definidor”

“Foi um crime bem planeado para criar o medo entre os muçulmanos de Kathua e para os expulsar desta região de maioria hindu”, disse ao site da Al-Jazira um dos membros dos Bakarwal, Talib Hussain, para quem a situação entre as duas comunidades “piorou” com a chegada ao poder do Bharatiya Janata.

Num artigo publicado no site indiano Scroll, o jornalista Samar Halarnkar também aponta o dedo ao partido no poder, que acusa de ser um facilitador da “mentalidade das multidões” com as suas políticas nacionalistas e o silêncio ao mais alto nível sobre o caso de Asifa Bano e sobre uma outra violação de uma menor em Unnao, no estado de Uttar  Pradesh.

Numa referência a esse silêncio, o site The  Quint abria esta sexta-feira com o título “Eis o que o primeiro-ministro, Narendra Modi, disse sobre os raptos em Kathua e Unnao”, seguindo-se um espaço sem texto e um alerta: “Esta notícia será actualizada assim que o primeiro-ministro, Narendra Modi, disser alguma coisa sobre os casos de Kathua e Unnao.”

A notícia seria actualizada dez horas depois, quando o primeiro-ministro quebrou o silêncio: “Os incidentes dos dois últimos dias envergonham uma sociedade civilizada. Curvamo-nos perante as figuras fundadoras da nação. Nenhum culpado será poupado, será feita justiça. Aquelas filhas vão ter justiça. A culpa não ficará impune e o Governo da Índia fará tudo para que isso aconteça.”

Mas o jornalista Samar Halarnkar diz que o caso de Asifa é “um momento definidor para a Índia”, num texto em que salienta o carácter excepcional do caso: “Poucas vezes a Índia esteve tão claramente confrontada com o seu lado mais negro e se recusou a reconhecer esse facto.”

“A forma como o sistema de Justiça, os media e o grande público reagirem, à medida que o caso chega à atenção de todo o país – muito graças ao poder das redes sociais –, poderá definir a forma como a Índia irá reagir amanhã a casos semelhantes e a situações que envolvem a religião e crianças, e se conseguirá manter os seus ideais modernos fundadores num tempo de crescentes tensões religiosas”, resume o jornalista.

Para além do crescimento da tensão religiosa e do nacionalismo com a chegada ao poder de Narendra Modi, há quatro anos, há muito que o país é confrontado com inúmeros casos de raptos, violações e homicídios de mulheres, em muitos casos menores de idade. Em 2012, no auge da fúria popular contra a violação e morte de uma estudante de Fisioterapia de 23 anos, que foi atacada e violada por um grupo de homens num autocarro em Nova Deli, o então primeiro-ministro do Partido do Congresso, Manmohan Singh, prometeu aprovar medidas “para tornar a Índia um sítio melhor e mais seguro para as mulheres”.

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