Um secretário de Estado da Cultura desautorizado

Miguel Honrado não tem condições para continuar no cargo: criou uma tal crispação no sector que torna impraticável o diálogo com as estruturas culturais.

Quando da nomeação de Luís Filipe Castro Mendes como ministro da Cultura, faz precisamente agora dois anos, tive ocasião de elogiar uma escolha com que António Costa surpreendeu tudo e todos, anotando contudo que, pela sua condição de diplomata, estava apartado dos diversos lobbies e facções dos meios culturais portugueses, isso também implicava um desconhecimento concreto do terreno, para mais em situação de emergência. Por isso tanto era necessário um Secretário de Estado da Cultura (SEC) com esse conhecimento.

A priori, a escolha de Miguel Honrado como SEC foi excelente. Tudo o que tinha vindo a fazer, ou quase, tinha-o feito bem: direcção do Teatro Viriato em Viseu, das Comédias do Minho (com a malograda Isabel Alves Costa) e sobretudo, sobretudo, da EGEAC, a empresa de gestão de equipamento e animação cultural de Lisboa, que tornou um sustentáculo de actividade na capital da maior importância. A única reserva que se me suscita, mas essa, devo dizer, é agora formulável retrospectivamente, é a de como presidente do Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II – de onde transitou directamente para SEC – se ter limitado à gestão sem participar na definição de um plano estratégico.

Ficou ele assim no Governo com a tutela das artes, da direcção-geral (DGArtes), dos teatros nacionais D. Maria e São João, desse monstro criado nos tempos de Sócrates que é a OPART, reunindo o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado (CNB), do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e da Cinemateca Portuguesa.

Dois anos volvidos, a questão é: o que sucedeu para um homem de tantos méritos se ter tornado uma tal catástrofe, só comparável às que tinham sido Santana Lopes com Cavaco e a dupla Isabel Pires de Lima e Mário Vieira de Carvalho com Sócrates?

Os atrasos são constantes, a DGArtes é pura e simplesmente inoperacional, numa situação de emergência o novo regulamento de apoio às artes demorou quase ano e meio (!) para ser elaborado e é de uma total incompetência, o outro regulamento de apoio, ao cinema, suscitou uma situação incendiária, os tão propalados contratos-programa com os teatros nacionais e a CNB continuam a ser “ultimados” (há meses que andam a ser “ultimados” sem serem assinados), do reforço administrativo da Cinemateca, prometido ainda em 2016 na Comissão Parlamentar de Cultura como uma das prioridades para 2017, não há quaisquer novas…

Em suma, está tudo mau, péssimo.

Se o sector do cinema já se tinha incendiado, agora é o das artes do espectáculo, com a comunicação aos concorrentes, que teoricamente podem ainda recorrer, dos escolhidos e dos preteridos nos concursos de apoio às artes. O estado “honrado” de catástrofe é de tal ordem que o primeiro-ministro já teve de vir a público anunciar um aumento de 1,5 milhões no apoio às artes, já depois de o ministro da Cultura ter prometido no Parlamento a abertura de uma linha de crédito. Acontece que o problema, grave, gravíssimo, não são apenas as escolhas mas sim o modelo – e nele o SEC insiste.

Deve dizer-se que os apoios contemplam um campo bem mais vasto do que as artes performativas, que são sempre o centro das atenções, por uma maior tradição reivindicativa e de acessibilidade aos media. O Art. 1º, 2) do Decreto-Lei n º 103/2017, de 24 de Agosto, especifica como áreas artísticas abrangidas a arquitectura, as artes plásticas, o design, a fotografia, os novos media, o circo contemporâneo e artes de rua, a dança, a música e o teatro. Quase só se fala do teatro e da dança, quando as maiores arbitrariedades existem também noutros sectores.

Um exemplo, o da música. No anterior concurso, em 2015, as atenções concentraram-se no fim do apoio à Cão Solteiro, no teatro, e à Re.al, na dança. Lidas com atenção as actas, verificava-se na música que a Associação Quarteto de Matosinhos tinha uma apreciação dos maiores encómios traduzida num apoio de… 0€! Agora é a Orquestra de Câmara Portuguesa que está em risco de extinção.

Mas Miguel Honrado insiste e mais diz, na recente entrevista ao PÚBLICO: “Eu não vou deixar de ser secretário de Estado da Cultura — o meu mandato termina daqui a um ano e meio — sem corrigir esta trajectória. 2017 foi ano de construção de um modelo e de lançamento de concursos, dois processos complexos; 2019 será o ano de acerto do calendário”.

Não vai deixar de ser secretário de Estado da Cultura? Não mesmo? Acontece que acaba de ser completamente desautorizado. Em Janeiro de 2017 apresentou ao sector de cinema um projecto de decreto-lei prevendo que os júris de apreciação dos projectos fossem eleitos na SECA, secção especializada de cinema e audiovisual, um organismo consultivo que é uma espécie de câmara corporativa, reunindo desde realizadores e produtores a operadores de canais por subscrição. Mas a que propósito é um órgão consultivo a eleger júris de apreciação?

Reacendeu-se a velha polémica entre os defensores do “cinema de autor” e os do “cinema industrial” (para a qual, diga-se, já não há a menor das paciências, que a querela, de tão velha, mais que cheira a mofo). Vivamente contestatários do projecto, por entenderem que a designação dos júris cabe à direcção do ICA e não a uma câmara corporativa, os primeiros entraram de tal modo em confronto com o SEC que consideraram não haver mais condições de diálogo, solicitando então a intervenção directa do primeiro-ministro. Mas Honrado persistiu até que, surpresa, há cerca de um mês o presidente do ICA anunciou na comissão parlamentar que os júris afinal iriam ser indicados pela direcção do Instituto – e é isso que consta no decreto-lei que está para ser promulgado na Presidência da República. É caso para falar da honra perdida de Miguel Honrado!

Agora é de novo directamente com António Costa que estruturas e agentes pedem para falar, isto depois de ter sido ele a anunciar o reforço das verbas de apoio, tal como foi ele que suscitou a conferência de imprensa desta terça-feira de Miguel Honrado. É caso para perguntar se, nesta sucessão de emergências, teve o primeiro-ministro de chamar a si a tutela directa. Mas afinal ainda há SEC ou só um simulacro?

Lamento muito, sinceramente lamento, pela estima que tenho por ele e pela admiração pelo muito que tinha feito ao longo dos anos, mas Miguel Honrado não tem condições para continuar a ser SEC: não só está desautorizado como criou uma tal crispação no sector que torna impraticável o diálogo com as estruturas culturais.

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