“Há troços na ferrovia que podem provocar descarrilamentos”

O presidente da Medway, antiga CP Carga, espera que os lucros obtidos em 2017 subam em 2018, mas a sua preocupação é o mau estado da infra-estrutura e a falta de canais para comboios de mercadorias.

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"Um porto no Barreiro, por ferrovia, para o mercado de Lisboa, não é uma solução", diz Carlos Vasconcelos Rui Gaudêncio

Sobre o estado da ferrovia, o líder da Medway, Carlos Vasconcelos, explica por que defende ser preferível modernizar a rede que já existe do que avançar para grandes investimentos em novas linhas.

Quais os resultados da empresa em 2017 e 2016?
Em 2016 tivemos um resultado negativo de 1,6 milhões e em 2017 tivemos um resultado positivo de 300 mil euros.

Ainda é cedo para uma previsão para 2018?
Não tenho dúvidas que vamos ter resultados positivos. Mas ainda é cedo porque depende do impacto do novo acordo de empresa.

Em 2017, segundo o INE, o transporte ferroviário de mercadorias cresceu 2,4%. E a Medway?
A Medway diminui 0,01% em toneladas transportadas, mas cresceu em facturação. O cimento não se exportou, logo não houve transporte desde as cimenteiras para os portos. Nós fazíamos comboios de cimento sobretudo para os portos de Aveiro e Setúbal com destino ao Norte de África, mas esse mercado caiu drasticamente. O nosso maior crescimento foi nos contentores.

A quota de mercado da ferrovia de mercadorias entre Portugal e Espanha é de apenas 4%. O que é preciso para mudar isto? Mais linhas?
Não diria mais linhas. Diria [que era preciso] que as actuais linhas fossem melhores, que nos permitissem ter comboios de 750 metros e que fossem todas electrificadas.

Até que ponto o plano de investimentos Ferrovia 2020 corresponde às vossas necessidades?
É um bom plano de investimentos do país. Poderia ser melhor, mas eu prefiro ter este projecto de investimentos concreto e real, que traz melhorias significativas, como é o caso da modernização da linha da Beira Alta, a nova linha para Badajoz e a melhoria da linha do Norte. Estamos satisfeitos.

O que faria de diferente?
Faria estas melhorias mais cedo. E criaria uma alternativa em certos troços da linha do Norte só para mercadorias, nomeadamente na zona mais próxima do Porto, onde o congestionamento torna difícil haver mais canais. Nós hoje temos alguma limitação no crescimento por causa da falta de canais.

Há outros constrangimentos à expansão da Medway?
Há o traçado da ferrovia portuguesa que não nos permite fazer comboios com 750 metros, e algumas pendentes, que reduzem a capacidade de tracção. Mas o problema maior é a falta de canais.

Tem, então, a perspectiva de que é preferível cuidar do caminho-de-ferro que existe, em vez de partir para investimentos em novas linhas?
Essa é a nossa perspectiva. Pragmática. É possível pôr a nossa ferrovia a produzir mais com o que temos do que estar com grandes investimentos em novas linhas.

A bitola ibérica é um problema para poderem operar na Europa além Pirinéus?
Não. De todo. A bitola ibérica é uma falsa questão. A ferrovia tem uma quota de mercado mínima no mercado ibérico e a bitola é a mesma. Os problemas são outros, são as linhas que, ou não são electrificadas, ou têm sistemas de explorações diferentes. A bitola não é um problema.

Há quem diga que ao defender a bitola ibérica está a defender um mercado de oligopólio no qual a sua empresa se sente protegida face à concorrência de outros operadores europeus.
Isso não tem qualquer fundamento. Nós não estamos num mercado de oligopólio. A ferrovia tem 4% de quota de mercado. O mercado são também os 96% da rodovia. O nosso concorrente é a rodovia e para a combater não precisamos de bitola europeia. Precisamos é de melhores linhas.

Mas refiro-me apenas ao mercado ferroviário, aos 100 por cento desses 4%.
Não estamos sozinhos. Existem 12 operadores em Espanha que podem entrar em Portugal em qualquer altura.

E no mercado português, que é claramente um duopólio, qual a repartição da quota de mercado entre a Medway e a Takargo?
Nós temos 90% e a Takargo 10%. Já no mercado ibérico a Renfe detém 48%, a Medway 28%, a Takargo 4% e os restantes operadores 20%.

Acha que são expectáveis mais operadores?
É difícil. Trata-se de um mercado que exige grandes investimentos, que tem uma quota pequena e que cresce pouco. Portanto não creio que haja oportunidade para novos operadores. Admito é que venha a haver aquisições e fusões. Por exemplo, fala-se em Espanha no interesse de um grande armador chinês pela compra da Renfe Mercancias.

Os únicos dois operadores ferroviários de mercadorias portugueses operam em Espanha, mas o contrário não se verifica. Porquê?
Nenhum deles tem meios interoperáveis. Só a Comsa tem locomotivas interoperáveis, mas eles já têm uma joint-venture com a Takargo. O que se passa é que o mercado português é pequeno, não tem grandes crescimentos e não se torna atractivo. Por outro lado, a Renfe, que é o maior operador da Península Ibérica, por ser uma empresa pública, tem algumas limitações para a expansão.

Deixou de operar na linha do Douro até ao Pocinho por causa do mau estado da infra-estrutura...
Exacto.

Poderá vir a ocorrer o mesmo noutras linhas?
Não temos a noção de que exista qualquer outra linha nessa situação. Não prevejo que isso venha a acontecer.

Desde 2016 houve sete descarrilamentos com comboios da Medway (e apenas um da Takargo). O que se passou?
Quase cem por cento desses descarrilamentos deveu-se ao mau estado das linhas. Penso que só houve um em que havia um defeito num rodado. Há, de facto, troços na ferrovia que podem provocar descarrilamentos.

O PÚBLICO deu a conhecer há semanas um relatório sobre o mau estado da infra-estrutura. Tinha conhecimento disso?
Sim. As nossas tripulações iam-nos relatando situações concretas de problemas nas linhas, que nós íamos transmitindo à IP. Estamos cientes desse cenário.

Como é em Espanha?
A Espanha tem melhor infra-estrutura do que em Portugal. Tem investido na ferrovia ao longo dos anos.

Falando num Ferrovia 2030, como é que perspectiva aquela linha Aveiro-Mangualde que já foi chumbada duas vezes por Bruxelas, e como vê uma eventual reabertura da linha do Douro para Espanha?
Do ponto de vista operacional, a linha do Douro é uma excelente opção e oxalá ela vá para a frente. A linha de Aveiro a Mangualde, eu percebo as reticências da UE porque hoje os volumes de carga não justificarão um investimento tão elevado.

A Medway leva locomotivas e tripulantes para o interior de Espanha ou muda de máquina e de tripulação na fronteira?
Nós já temos dois serviços com origem e destino dentro de Espanha. Um comboio diário que faz Valência – Madrid, com locomotiva, vagões e tripulações nossas. E um serviço de contentores entre Sevilha e Sines, que é combinado com a Renfe, em que a nossa locomotiva vai até Mérida e depois os nossos vagões são rebocados por uma locomotiva da Renfe de Mérida a Sevilha.

Estamos a falar de um serviço Sevilha – Sines que dá uma volta por Abrantes e Entroncamento.
Sim. Enquanto não se construir a nova linha de Évora a Badajoz. Mas mesmo assim é competitivo.

Não têm tido greves. Como tem conseguido obter a paz social na empresa?
Com o empenho dos nossos colaboradores em fazer a empresa andar. Não fomos nós que conseguimos nada. São as pessoas que cá trabalham. Como o acordo de empresa vigente era uma extensão do acordo do tempo da CP, nós iniciámos uma negociação e já assinámos um novo acordo com 13 sindicatos. A excepção são os maquinistas, que têm um acordo à parte e que está um pouquinho mais demorado.

Como é que os vossos patrões suíços [MSC] têm avaliado a experiência portuguesa de terem um operador ferroviário?
Pode parecer suspeito, mas noto na Suíça um grande entusiasmo e até um certo carinho por este projecto, que, aliás, está a servir de modelo para ser replicado noutros países. Estamos a ultimar um projecto de investimento muito significativo para os próximos dois anos e temos todo o apoio do accionista.

“Um novo porto não é uma boa solução para o porto de Lisboa”

Setenta por cento do vosso tráfego tem origem ou destino nos portos. As infra-estruturas de ligação aos portos marítimos são boas?
Leixões tem o constrangimento da parte norte da linha do Norte. Mas Lisboa tem os constrangimentos nos terminais de contentores, onde todos os anos temos três ou quatro acidentes com pessoas ou carros.

Como é que resolveria, na perspectiva ferroviária, o problema do porto de Lisboa? Barreiro, Trafaria...?
E o porto de Lisboa tem solução? (risos). Acho que vai ser muito difícil em termos ferroviários resolver o problema de Alcântara e de Santa Apolónia. Em Alcântara seria preciso subir ou baixar a rodovia ou a ferrovia, o que é uma obra muito cara.

Mas entre essa obra e um novo porto...?
Falando como portuário, acho que um novo porto não é uma boa solução para o porto de Lisboa. A carga está a norte do porto de Lisboa e transferir essa carga para o Barreiro vai tornar Lisboa menos competitiva porque vai agravar os custos para fazer chegar as mercadorias ao destino final. Agora, enquanto utilizador do porto de Sines, digo com toda a frontalidade que Sines fica mais competitivo face ao Barreiro.

Mas entre o Barreiro e qualquer outra alternativa a sul de Lisboa, faria mais sentido, do ponto de vista portuário, Setúbal porque este já conseguiria justificar uma ligação ferroviária competitiva. Agora o Barreiro não, porque não se transportam contentores da margem norte para o Barreiro de comboio. Não faz sentido. Só de camião. Portanto, o Barreiro, por ferrovia, para o mercado de Lisboa, não é uma solução.

A menos que se fizesse uma ponte ferroviária...
Sim. Mas mesmo assim, por 20 ou 30 quilómetros não se justifica a ferrovia. E o mercado de Lisboa está aqui num raio de 50 a 60 quilómetros.

Então a solução seria mesmo um desnivelamento em Alcântara?
Sim, um desnivelamento da rodovia. Seria mais barato do que o desnivelamento da ferrovia.

Como é que avalia esta originalidade portuguesa de se ter juntado o gestor de infra-estruturas ferroviárias com a Estradas de Portugal?
Vejo positivamente porque criou-se uma grande empresa com uma capacidade de investimento que vai beneficiar os dois lados. Vai ser mais fácil investir na ferrovia com as receitas que a IP tem do que se fosse só a Refer a viver à custa das suas receitas. Em Espanha é diferente: o Adif [Administrador de Infraestruturas Ferroviarias] tem uma capacidade de investimento que a Refer nunca teve.

Que investimentos tem a Medway previstos?
Adquirimos quatro locomotivas que são interoperáveis em Portugal e Espanha, por 15 milhões de euros, investimos 500 mil euros em 36 geradores para ligar contentores frigoríficos e estamos a fazer obras no valor de 200 mil euros em todos os centros de trabalho que temos espalhados pelo país. Temos um plano ambicioso de investimentos para os próximos dois anos que prevê a compra de mais locomotivas e vagões.

Na vossa estrutura de custos quais são as principais facturas?
A maior é a manutenção do material (vagões e locomotivas), que representa 30% dos nossos custos. Depois é a mão-de-obra, que rondará um valor semelhante e a seguir a energia.

E a taxa de utilização da infra-estrutura? É mais cara em Portugal do que em Espanha?
A nossa é mais cara do que a espanhola. Faz diferença, mas não é significativa. Não é por causa da taxa de uso que o comboio não é competitivo.

Em relação aos custos externos dos transportes, que são maiores na rodovia do que na ferrovia, acha que o Estado deve ter um papel mais interventivo para que haja uma verdade nos custos?
Se o CO2 fosse taxado, obviamente que a rodovia perderia alguma competitividade. Mas tenho algumas dúvidas se a rodovia está a pagar a infra-estrutura na proporção da sua utilização. É que, enquanto nós, na ferrovia e nos portos, pagamos a infra-estrutura na sua totalidade, eu não sei se a rodovia paga na totalidade. Sempre ouvi dizer que não.

A rodovia é um excelente meio de transporte, altamente eficiente, que num país pequeno como o nosso, é difícil de combater. Nos Estados Unidos é fácil a ferrovia ter competitividade quando se faz um trajecto costa a costa de milhares de quilómetros. Mas na Europa é mais difícil.

“Deveria haver um imposto sobre o CO2"

Mas se o Estado taxasse mais a rodovia, isso seria vantajoso para o modo ferroviário?
Eu sou o mais possível contra a criação de facilidades artificiais. Acho que cada meio de transporte, cada indústria, tem de ser competitiva por si própria. O CO2 entendo que deve ser taxado, uma vez que há um consenso nas sociedades de que devemos reduzir a emissão de dióxido de carbono. E por isso o poluente deve pagar a poluição. Tal como existe o IVA, também deveria haver um imposto sobre o CO2 para todas as actividades que o produzem. Mas não advogo sobrecarregar a rodovia para beneficiar outros modos de transporte.

O que nós gostaríamos era trazer o camião para dentro do comboio porque o congestionamento das estradas vai trazer problemas ao camião. Se conseguíssemos pôr as galeras [reboques dos camiões] dentro do comboio, nós ajudaríamos a reduzir o congestionamento das rodovias e a emissão de CO2 e todos ficaríamos a beneficiar.

Onde é que isso já funciona bem?
No norte da Europa, por exemplo, do sul da França para o Norte. Aqui poderia funcionar muito bem entre Portugal e a França, mas esbarramos com um problema – há três túneis em Espanha que não têm altura suficiente para o comboio passar com o camião. Seria necessário baixar a linha para ganhar altura.

Se não fosse isso, seria possível ter um Sud Expresso de mercadorias?
Sim! Mas como isso depende dos espanhóis, nós estamos a preparar uma exposição ao Governo para que este sensibilize o governo espanhol para a necessidade de intervir nesses três túneis. É também do interesse de Espanha porque iria retirar camiões daquela célebre estrada de Salamanca a San Sebastian. E um dia ainda espero relançar o comboio Autoeuropa, de Palmela para a Alemanha. Mas isso só quando existir uma distribuição dos canais feita pelo centro europeu de controlo de tráfego ferroviário.

Porque até lá os franceses não facilitam a passagem de comboios vindos do Sul para a Alemanha?
Não. Até agora não. Foi por causa disso que o comboio da Autoeuropa deixou de circular. Devido às dificuldades, para não dizer boicote, que os franceses criavam à sua passagem.

Uma empresa de transporte de mercadorias é um bom barómetro da actividade económica do país. A crise já passou?
A crise já passou, sobretudo nos sectores ligados à exportação. O tecido empresarial português reorganizou-se, está mais exportador e eu noto isso mais na parte marítima em que o crescimento é significativo. Já na ferrovia o que notamos é mais perguntas, mais pedidos de transporte.

O tecido empresarial português, sobretudo no norte do país, é bastante disperso. É difícil concentrar pólos geradores de tráfego que justifiquem a realização de comboios de mercadorias?
É. Nós temos comboios multi-cliente em contentores. Recebemos os contentores de vários clientes e o risco do comboio é nosso. Estamos a tentar alargar o conceito para comboios multi-produto, ou seja, ter na mesma composição contentores, caixas móveis, cisternas, etc. O problema é a dificuldade em agregar cargas e em conseguir ter fluxos nos dois sentidos.

Nem sempre o conseguem?
Conseguimos gerar mais fluxos do Sul (Lisboa, Setúbal e Sines) para o Norte, por causa das importações, mas depois não temos carga do Norte para o Sul.

E no caso de Espanha, conseguem o ida e volta com carga?
Não. A carga é fundamentalmente de lá para cá. Mas começamos há poucas semanas com um tráfego muito regular de um cliente específico de Sines para Madrid.

Como reagiram os trabalhadores à nova gestão privada?
Na privatização, a nossa grande apreensão era sobre como os colaboradores iam reagir à mudança de accionista. Foi muito agradável verificar o nível de profissionalismo das pessoas e o seu empenho no trabalho. E isso explica por que é que a empresa nos últimos anos tinha entrado num processo de recuperação e estava no bom caminho. A última administração pública fez, de facto, um excelente trabalho de melhoria da empresa.

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