Uma ferramenta para ditadores e genocidas

Enquanto o Ocidente teme os efeitos do Facebook no processo democrático, na Ásia a rede social é acusada de ter facilitado conflitos étnicos e projectos de consolidação de poder autoritário. Um responsável da rede diz perder “algum sono” com o problema, mas admite não ter solução

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Reuters/Tyrone Siu

É tentador limitarmo-nos a debater como o Facebook tem sido uma ferramenta central em operações de influência e manipulação do eleitorado nos Estados Unidos, no Reino Unido ou em Itália, mas também no Quénia. No entanto, o problema de uma rede social que se tornou uma praça pública global, e cujo sentido de responsabilidade não acompanhou o crescimento explosivo do seu número de utilizadores, vai muito além do seu impacto nas democracias avançadas ou em desenvolvimento. Em países com fracas instituições, reduzida literacia, uma imprensa manietada, tensões étnicas e religiosas, ou onde a Internet chegou tarde e se resume praticamente à rede social de Mark Zuckerberg, os erros e omissões do Facebook custam vidas.

Muito longe das atenções dos últimos dias, por exemplo, o Camboja transformou-se num país onde a mensagem do líder autoritário Hun Sen passa sem filtros através do Facebook, onde a oposição diz ocorrer um fenómeno suspeito, ao mesmo tempo que a comunicação social é silenciada. 

A nação do Sudeste asiático, que nos anos 1970 perdeu um quinto da população às mãos do regime dos Khmer Vermelhos, vai a votos em Julho. O líder da oposição, Kem Sokha, do Partido de Salvação Nacional, foi detido e acusado de colaborar com os EUA para derrubar Hun Sen. Sam Rainsy, anterior líder do mesmo partido, foi forçado ao exílio em França. No último Verão, o regime fechou dezenas de rádios regionais que retransmitiam noticiários da Voz da América e, reclamando impostos em atraso, levou ao encerramento o principal jornal independente de língua inglesa, o Cambodia Daily, que na sua última edição declarou em manchete que o país se tornou uma ditadura.

Sem crítica nem contraditório, o primeiro-ministro Hun Sen, no poder há 33 anos e candidato às eleições de Julho, fez do Facebook o seu órgão oficial e por lá protagoniza um estranho fenómeno de popularidade. Tem 9,6 milhões de fãs, apesar de o número oficial de utilizadores do Facebook no Camboja pouco ultrapassar os seis milhões. Consegue o feito de ser o oitavo líder político mais popular da rede a nível mundial e o terceiro com maiores índices de interacção, segundo uma análise da empresa de relações públicas Burson-Marsteller.

Sam Rainsy, o dirigente da oposição exilado, diz que a presença digital de Hun Sen foi inflacionada por posts pagos e fãs comprados a “fábricas de cliques”. Em Fevereiro, advogados do político entraram com uma acção num tribunal da Califórnia para exigir ao Facebook que revele “informação importante sobre a manipulação das redes sociais por Hun Sen para defraudar o eleitorado do Camboja e cometer abusos de direitos humanos”, segundo noticiava a Reuters. “Esta levanta questões fundamentais sobre como o Facebook deveria lidar com abusadores dos direitos humanos que manipulam eleições”, dizem os advogados.

Perante este cenário, o Facebook é acusado de ter ainda agravado a situação. No final de 2017, a empresa testou em seis países uma mudança do algoritmo e da estrutura do feed de notícias para privilegiar as publicações de perfis pessoais em detrimento das publicações de páginas de empresas, incluindo órgãos de comunicação social (o objectivo era tentar conter a recente quebra dos índices de interacção entre utilizadores). Nesses países, vários jornais, rádios e televisões viram as visitas aos seus sites oriundas do Facebook cair drasticamente. Um desses seis países foi precisamente o Camboja, onde as publicações de jornais independentes e de serviços internacionais como o da Rádio Ásia Livre (filial da Voz da América) desapareceram dos feeds dos utilizadores. O Post Khmer, um jornal independente de Phnom Penh, disse à BBC ter perdido pelo menos 35% das audiências e foi obrigado a pagar posts.

A experiência do algoritmo foi oficialmente suspensa a 1 de Março. Quanto ao processo movido na Califórnia sobre a página de Hun Sen, o Facebook continua em silêncio.

A rede transformou-se num “monstro”

O Facebook enfrenta acusações mais graves na Birmânia, outro país que acordou tarde para a Internet e onde a rede ocupa o papel central na paisagem virtual – e, tal como no Camboja, onde a imprensa independente tem um alcance limitado e vive sob fortes constrangimentos.

A 12 de Março, Marzuki Darusman, líder de uma missão de apuramento de factos das Nações Unidas na Birmânia, acusou o Facebook de ter tido um “papel determinante” na violência contra a minoria muçulmana rohingya, alvo de uma campanha por parte de extremistas budistas e das forças militares que tem valido acusações de “genocídio” e “limpeza étnica” por parte de observadores internacionais. 

“Contribuiu substantivamente para o nível de animosidade, discórdia e conflito na opinião pública. O discurso de ódio é certamente uma parte disso. Em relação à Birmânia, as redes sociais são o Facebook e o Facebook são as redes sociais”, disse, citado pela Reuters.

“Temo que o Facebook se tenha tornado um monstro”, disse na mesma altura Yanghee Lee, investigadora das Nações Unidas, citando o exemplo de “budistas ultranacionalistas que com os seus próprios perfis de Facebook estão a incitar à violência e ao ódio contra os rohingya e outras minorias”.

O mais influente desses extremistas é o monge budista Ashin Wirathu, que apela ao extermínio dos rohingya e não enjeita as comparações que lhe são feitas na imprensa internacional a Adolf Hitler e Osama bin Laden. Recorrentemente proibido de proferir sermões na Birmânia, e depois de vários anos a distribuir DVD com os seus discursos de ódio, encontrou no Facebook uma plataforma para a sua mensagem. Foi suspenso várias vezes, mas foi só em Janeiro que a rede apagou definitivamente a sua página.

Mesmo sem Wirathu, o Facebook continua a ser uma fonte de desinformação e propaganda extremista na Birmânia, onde 38% do público tem na rede a sua principal fonte de notícias e a empresa diz não encontrar parceiros credíveis para exercícios de verificação de factos. O problema das notícias falsas assume especial gravidade, com responsáveis militares e políticos, incluindo o porta-voz de Aung San Suu Kyi (líder birmanesa de facto), a disseminarem informação incorrecta sobre a crise dos rohingya e a empregarem abusivamente o termo fake news contra jornalistas independentes e órgãos estrangeiros.

Mais de 700 mil muçulmanos foram forçados a fugir para o vizinho Bangladesh desde Agosto de 2017 e um número indeterminado de civis foram assassinados ou morreram durante a fuga.

Há uma semana, Adam Mosseri, um alto responsável do Facebook, admitia num podcast da revista Slate que a empresa perdia “algum sono” a pensar na situação na Birmânia, mas dizia não ter solução para o problema. No Twitter, o colunista do New York Times Kevin Roose respondeu à confissão de impotência de Mosseri: “Então porque não encerram o Facebook ali?”

“Matem todos os muçulmanos”

O Sri Lanka é outro país predominantemente budista e com um historial de violência entre comunidades étnicas e religiosas que enfrenta um problema de incitamento ao ódio no Facebook. Este mês, o Governo suspendeu o acesso à rede e também ao Instagram, WhatsApp e Viber durante uma semana para travar a circulação de mensagens a apelar a ataques contra a minoria muçulmana. Pelo menos duas pessoas morreram e dezenas de mesquitas, casas e lojas pertencentes a muçulmanos foram destruídas na região de Kandy. 

A violência no Sri Lanka tem aumentado desde 2017, com os extremistas budistas a justificarem as suas acções com crimes supostamente cometidos por muçulmanos. Aqui, mais uma vez, o Facebook tem sido uma ferramenta para a disseminação de boatos. Às notícias falsas juntam-se memes e vídeos (com o YouTube a ser outro foco de propaganda) que vendem a ideia de uma conspiração para islamizar o país através da arma demográfica (citam-se dados duvidosos sobre os índices de fertilidade das famílias muçulmanas) e de conversões forçadas.

“Acabou-se a paciência. A faca que tens em casa não serve só para para cortar a fruta”, ouvia-se num dos vídeos que circularam nas semanas anteriores ao pogrom de Kandy. 

O Governo de Colombo, justificando o bloqueio de Março, acusa o Facebook e outros gigantes da Internet de terem agido tardiamente aos sinais de alarme. “Este país inteiro podia ter ficado em chamas numa questão de horas”, disse o ministro das Comunicações Harin Fernando, citado pelo Guardian. “O discurso de ódio não está a ser controlado por estas organizações e tornou-se um grave problema global.”

“O Facebook não está a reagir tão rapidamente quanto queríamos. Demoraram vários dias a rever publicações e a eliminar páginas”, disse. No Twitter, Fernando deu o exemplo de uma mensagem partilhada no Facebook a apelar à morte de muçulmanos: “Matem todos os muçulmanos, não deixem sequer as crias desses cães escaparem.” A publicação foi denunciada. Seis dias depois, chegou a resposta de que não violava qualquer regra específica do Facebook. A empresa diz agora que vai contratar mais moderadores de língua cingalesa.

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