Marielle Franco e a hegemonia do medo

Marielle enfrentou a face oculta do poder com a desfaçatez de uma crente nas instituições democráticas.

Eu não quero roubar a dor às mulheres afro-brasileiras, nem tampouco às feministas, políticas, activistas e socialistas negras brasileiras. Também não posso querer partilhar a dor dos e das faveladas do Brasil, dos mais pobres, e por isso mais desprotegidos, ou mesmo das mulheres lésbicas negras e dos habitantes de Maré e dos 46.502 eleitores que fizeram de Marielle Franco a quinta mais votada no Rio de Janeiro. Não pretendo igualmente fingir que sou brasileira e que sinto na pele o que é ter um país sequestrado, dividido e uma democracia em convalescência. Também não quero tentar sequer comparar-me a quem convive quotidianamente com a morte programada e com a violência direccionada que mata centenas de milhares de jovens negros e pobres em nome da luta contra o crime, que se traduz na legitimação de um genocídio que subtrai vidas negras a cada segundo.

Mas, assim como hoje em toda a parte, junto a minha voz a todos e a todas que choram e gritam a morte de Marielle. Porque a Maré cheia de futuro e optimismo vazou para o mar/Rio vermelho do sangue dos meus irmãos e irmãs negras desse Brasil. E porque a luta dos negros e negras de todo o mundo é a mesma luta. Porque carregamos uma história comum, um estigma comum, uma pele marcada pelo colonialismo e pelo tráfico dos nossos antepassados. Porque os negros são os espelhos uns dos outros nos momentos de dor e consternação. Isto não é poesia, acreditem. E tudo isso faz com que eu precise, mesmo não querendo, de roubar essa dor aguda e profunda para me conectar com os meus do outro lado do Atlântico.

Não conhecia Marielle até à data da sua morte a 14 de Março de 2018. Passei o dia a ouvir a sua voz e a sentir o pulsar da sua vida. Li tudo o que consegui sobre o seu percurso de “cria da favela”, mãe aos 18 anos, bolseira, socióloga, mestre, política, activista dos direitos humanos, mulher destemida, bonita, estruturada, que parecia feliz no seu percurso. A empatia foi aumentando a cada minuto e com ela a angústia, a revolta e uma tristeza sem fim.

Na roda de conversa intitulada "Jovens Negras Movendo as Estruturas", a última em que participou, Marielle falava alegremente e incentivava as mulheres a intervir. Falou-se dos desafios que as mulheres afro-brasileiras enfrentam, do racismo estrutural, do privilégio branco, das diferenças existentes no Movimento Negro, de Angola, da ancestralidade, e eu deti-me no pormenor em que Marielle afirma saber que não caminha sozinha pois os seus ancestrais a acompanham, e chorei. Veio-me à memória Bethânia quando canta e quando muitas amigas negras brasileiras cantam o "Não mexe comigo, eu não ando só! Eu não ando só! Eu não ando só!", seguido geralmente de olhares e risos cúmplices de quem avisa, se afirma e se protege. Marielle falou também da objectificação do "corpo negro" e das violências perpetradas a esse corpo. O seu corpo, afinal.

A vereadora Marielle Franco foi executada juntamente com o motorista Anderson Pedro Gomes. Enfrentou a face oculta do poder com a desfaçatez de uma crente nas instituições democráticas. Sorriu e ironizou, dando lições aos detentores de armas de fogo e canetas de pólvora. Contra a violência policial, contra a militarização do Estado, própria das ditaduras e dos fascismos cinzentos que a História já conheceu.

Nessa mesma conferência, uma mulher intervém e diz que quando vê outra mulher negra ela se vê a si própria. Marielle também disse que as mulheres negras devem se reunir, se conhecer, de estar juntas.

Eu e Marielle Franco nascemos no mesmo dia, a 27 de Julho. Com a hegemonia do medo, se eu fosse uma mulher negra, académica, feminista, política e activista anti-racista no Brasil, quanto tempo de vida me restaria? (três anos, que era a nossa diferença de idade?)

Das suas últimas palavras: “Quantos vão precisar de morrer para que esta guerra acabe?”

Marielle Franco, Presente!

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