Aniquilação, o filme que Hollywood não soube perceber

Cabe ao Netflix a honra de receber uma sumptuosa ficção científica adulta com Natalie Portman que o escritor Alex Garland realizou – porque o estúdio que o produziu não acreditou nele e preferiu dar um tiro no pé.

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Um realizador saído de um filme aclamado e premiado, capaz de tornar o cinema de género apetecível a outros públicos mais adultos. Um elenco inteiramente feminino, capitaneado por actrizes de peso como Natalie Portman e Jennifer Jason Leigh. Uma adaptação de um romance best-sellerAniquilação, de Jeff Vandermeer, primeiro da trilogia dita da “Área X”. Aniquilação, do escritor e argumentista Alex Garland, era um dos filmes mais aguardados da rentrée hollywoodiana 2017/2018, sobretudo depois de a sua estreia na realização, Ex Machina (2014), ter provado que o autor de A Praia e argumentista de 28 Dias Depois era um nome a reter.

E, de repente, eis que Aniquilação desaparece dos mapas de estreias internacionais e surge na plataforma de streaming Netflix (em Portugal desde 12 de Março). Triste destino para um filme que o próprio Garland, em entrevistas, disse ter sido feito a pensar no grande écrã, e que é um dos mais singulares objectos que vimos recentemente – um filme simultaneamente alienígena e reconhecível, europeu sem deixar de ser americano, destinado ao estatuto de clássico de culto. O suficiente para meter medo a um grande estúdio: depois de O Paradoxo Cloverfield ter ultrapassado por completo o circuito de cinema, estreando-se directamente na Netflix no início de Fevereiro, Aniquilação é o segundo “problema” de que a Paramount se livra no espaço de um mês.

Simplesmente, o problema não é Aniquilação. O problema é a Paramount.

Aniquilação é uma “herança” do anterior “regime” do estúdio, liderado pelo antigo agente Brad Grey, que presidiu aos destinos da Paramount até ao início de 2017. E o ano de 2017, preenchido pelas últimas produções sob a alçada de Grey, foi desastroso para o estúdio, marcado por três fracassos de prestígio (Mãe!, de Darren Aronofsky, Suburbicon, de George Clooney, e Pequena Grande Vida, de Alexander Payne) e duas apostas de grande orçamento que ficaram aquém das expectativas (Ghost in the Shell e Baywatch – Marés Vivas). Jim Gianopulos, o novo director da companhia, vem da Fox, estúdio sempre muito atento ao retorno do investimento, e deixou clara a sua vontade de redireccionar a companhia.

Aniquilação não foi um filme extraordinariamente caro (custou 55 milhões de dólares), e surge na sequência de O Primeiro Encontro, o filme de Denis Villeneuve com Amy Adams sobre o primeiro contacto com uma civilização alienígena que foi distribuído pela Paramount nos EUA com sucesso comercial e nomeações para os Óscares. Mas as alterações que a Paramount pediu a Garland e ao produtor Scott Rudin, e que estes, com direito sobre a montagem final, se recusaram a fazer, fazem-nos interrogar se O Primeiro Encontro teria sido aceite pela nova gerência. Sobretudo porque o que Garland fez antes com Ex Machina não escondia nada sobre o que aí vinha: um filme adulto, cerebral, recorrendo a poucos actores e com décors limitados, rendeu mais do dobro do que custou e foi nomeado para o Óscar do melhor argumento e galardoado com o Óscar dos efeitos visuais.

A incompreensão dos estúdios

Tudo o que nos fazia gostar de Ex Machina continua presente e é mesmo reforçado em Aniquilação, que Garland fez com a mesma equipa criativa do filme predecessor. A história de uma equipa inteiramente feminina de cientistas enviada para uma misteriosa “zona” onde as leis da natureza parecem ter deixado de se aplicar avança com uma determinação suspensa, quase onírica. O que de estranho se passa para lá da fronteira desta zona rodeada por uma “bolha” translúcida e colorida parece acontecer em câmara lenta, como se as suas personagens fossem prisioneiras de um estranho sonho. É inevitável pensar na “zona” do Stalker de Andrei Tarkovski – mas a precisão dos enquadramentos e do trabalho de câmara, ou seja a sensação de haver aqui uma mão de cineasta-demiurgo, faz-nos também pensar em Stanley Kubrick, e nesse 2001: Odisseia no Espaço que se tornou matriz da ficção científica cerebral, do espectáculo que se recusa apenas a fazer fogo de vista. Há uma singularidade em Aniquilação que não encaixa, de todo, na formatação tradicional do blockbuster.

E a ironia de este filme não chegar às salas fora dos EUA é trágica. Num momento em que os Óscares premeiam A Forma da Água de Guillermo del Toro (que, independentemente do que se achar dele, celebra um modo de fazer e pensar o cinema que não se enquadra na lógica formulaica dos franchises e dos “universos cinemáticos”) e um filme de super-heróis como Black Panther reune o consenso crítico e público, um dos mais arrojados espectáculos em que Hollywood investiu recentemente é descartado por um estúdio que não sabe o que fazer com ele.

É evidente que os estúdios estão nisto para fazer dinheiro – Hollywood sempre seguiu a lógica da indústria, os próprios Óscares são uma celebração daquilo que a indústria considera ser “um filme de qualidade”. Mesmo os grandes nomes da “nova Hollywood” esbarraram a seu tempo na incompreensão dos estúdios (não é preciso lembrar como a Warner estava à toa com Bonnie e Clyde). Aniquilação não é o primeiro, nem será o último, bom filme a passar ao lado das salas – o que os estúdios procuram hoje é o filme de grande espectáculo que possa falar a uma audiência cada vez mais global e cada vez mais oriental. É verdade que o empolamento dos orçamentos e dos custos de marketing é tal que a última coisa que um estúdio quer é correr riscos. Mas quando um filme como Black Panther prova que é possível incorporar outras questões num produto de entretenimento, quando o movimento #MeToo invade a sociedade americana, perder a fé num filme como Aniquilação, cujos heróis são mulheres num universo que costuma ser puramente masculino, é incompreensível.

Não há muito tempo, despachar um filme directo para vídeo ou DVD era uma “letra escarlate” – sinal de um filme mau, falhado, incompreendido, maldito ou deserdado. Hoje, já não é bem assim, mas o estigma continua a existir. E, ao despachar Aniquilação para o Netflix fora dos EUA, ao mesmo tempo que lhe cola a etiqueta de filme-problema, a Paramount admite que há filmes que já não têm lugar no modelo de negócio tradicional, ao mesmo tempo que reforça a ascensão do streaming como espaço de experimentação e liberdade criativa. Aniquilação podia ter sido uma prova de que os estúdios ainda acreditam no cinema. Em vez disso, é uma admissão da sua irrelevância numa paisagem que ainda não compreendem. 

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