Como se manipula um jogo de futebol

A acusação do processo conhecido como Jogo Duplo, que começa nesta quinta-feira a ser julgado no Campus da Justiça, parece um manual de como viciar resultados. Três dos 28 arguidos continuam em prisão domiciliária.

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Adriano Miranda

Contactos e dinheiro. Basicamente são estes os dois ingredientes necessários para viciar um jogo de futebol da II Liga. A comprová-lo estão as mais de cem páginas da acusação do processo Jogo Duplo, que começa nesta quinta-feira a ser julgado no Campus da Justiça, em Lisboa. O processo já passou pelo crivo de um juiz de instrução, que em Setembro do ano passado decidiu levar a julgamento todos os acusados do caso.

No banco dos réus vão sentar-se 28 arguidos, três dos quais continuam em prisão domiciliária, vigiados por uma pulseira electrónica. Ficaram privados da liberdade no rescaldo da operação lançada pela Unidade Nacional de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária, em Maio de 2016, e ainda não a recuperaram face ao receio da Justiça de que continuem a actividade criminosa. Um deles é um destacado membro da claque do FC Porto Super Dragões.

A maioria dos arguidos são jogadores de futebol ou antigos profissionais com contactos no meio, mas também há treinadores e dirigentes desportivos. Do rol faz até parte uma sociedade anónima que controla um clube, o Leixões, acusada de corrupção activa. Quase todos respondem por corrupção desportiva, mas há um grupo de seis que está acusado de associação criminosa. Há ainda cinco arguidos a quem foram imputados crimes de apostas ilegais, por alegadamente não terem resistido à tentação de ganhar uns extras através de apostas em jogos em que tinham intervenção — logo, estavam proibidos de o fazer.

Fora da acusação ficaram três cidadãos malaios, identificados no processo, que seriam os “investidores”, como eram apelidados por alguns dos arguidos. Eram eles quem financiava a viciação dos resultados e, desta forma, garantia que as apostas feitas a nível internacional eram bem sucedidas. Estes estrangeiros viajaram várias vezes para Portugal e o seu papel, segundo a acusação, seria transportar o dinheiro usado para pagar as “luvas” de jogadores e as comissões dos intermediários que os contactavam.

Os malaios fariam questão de falar pessoalmente com os jogadores que corrompiam. Mas quando não tinham hipótese de o fazer, exigiriam, segundo o Ministério Público, uma videochamada, em que os jogadores confirmavam a adesão ao esquema. Gostavam ainda de assistir ao vivo à maior parte dos jogos nos quais haviam “investido”, na maior parte dos casos, entre 30 a 45 mil euros.

Esse dinheiro era depois repartido entre os jogadores e os intermediários que os convenciam, muitas vezes recorrendo a redes sociais como o Whatsapp, a alinhar no esquema. A rede preferia recrutar jogadores com determinadas posições no campo, como guarda-redes e defesas. Um ponta-de-lança comprado podia, no entanto, ter um papel fulcral, como no caso de um jogador da Oliveirense a quem prometeram 5000 euros extra por cada penálti que desse à equipa contrária — no caso, o Leixões.

Cinco mil euros é, aliás, a contrapartida mais repetida ao longo da acusação. Mas não havia montantes fixos e a ajuda de um jogador com um papel essencial podia valer 15 mil euros, o valor que a acusação diz ter sido oferecido ao capitão da Oliveirense para deixar o Leixões ganhar, em Maio de 2016.

“Fazer” um jogo, como se dizia na gíria dos arguidos, implicava normalmente o conluio de pelo menos quatro atletas. Mas, por vezes, o número podia chegar aos sete.

Os jogadores recebiam metade do dinheiro à cabeça e a outra metade depois de os corruptores terem ganhado as apostas e garantido o resultado pedido. Mas a actividade não era isenta de riscos e, por vezes, mesmo com futebolistas comprados, não se conseguiam os resultados pretendidos. Exemplo disso foi o que aconteceu em Abril de 2016, num jogo entre o Oriental e o Leixões. O objectivo era que o clube nortenho vencesse, mas a diferença de golos teria que ser superior a três, o que não aconteceu, já que o jogo terminou 0-1. Tal levou um dos intermediários a exigir a dois dos arguidos a devolução dos montantes recebidos. Neste caso, mensagens detectadas pelos investigadores, contabilizaram um prejuízo de 100 mil euros para a rede luso-malaia.

Até porque nem sempre era garantido quem eram os jogadores que o treinador escolhia para o “onze”. E, por isso, havia o risco de se pagar a um atleta que não chegava a por os pés no relvado. Outras vezes, como aconteceu com um jogador do Oriental, a estranheza da sua actuação levou o treinador a desconfiar do que se estaria a passar e a optar por substituir o atleta a meio do jogo.

Não é um acaso que os apostadores preferissem competições como a II Liga, ao invés das Ligas da ribalta. A escolha tem em conta a menor exposição mediática dos jogos, muitos sem transmissão televisiva, o que permite poupar nas “luvas”. Não que o negócio em causa seja de míngua — basta ver que só a II Liga nacional movimenta por jornada cinco milhões de euros, aponta a acusação.

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