Soma zero

Não é o primeiro passo em falso de Ridley Scott, mas é o maior — e vai ficar na história pelos motivos errados.

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As decisões “artísticas” submetidas às decisões “de negócio”: o cinema e Ridley Scott

Ridley Scott marcou o “destino” de Todo o Dinheiro do Mundo quando, a poucas semanas da sua estreia, decidiu “expurgar” Kevin Spacey, entretanto caído em desgraça, do filme acabado, e voltar a filmar as suas cenas, substituindo-o por Christopher Plummer. Podemos ficar aqui a discutir a moralidade e a validade da decisão de Scott até vir a mulher da fava rica, mas o sinal que ela lança não pode ser ignorado: o cinema, neste contexto, é um simples jogo de “soma zero” onde as decisões “artísticas” se têm de submeter às decisões “de negócio”. A ironia é tanto maior quanto o centro nevrálgico da história reside precisamente aí: em 1975, o adolescente John Paul Getty III, ainda adolescente, é raptado por um resgate milionário, que o avô, o homem mais rico do mundo, se recusa a pagar. Scott recusou-se a ficar refém das chatices que as acusações de natureza sexual contra Kevin Spacey pudessem levantar, e preferiu jogar pelo seguro para garantir que os investidores nesta produção independente não perdessem o seu dinheiro — isto enquanto o seu filme defende com unhas e dentes que a justiça e a decência estão do lado da mãe, uma mulher determinada mas sem cheta a quem o dinheiro criou mais problemas do que resolveu.

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Dito isto, nem a hipocrisia de que o próprio filme faz prova (e perante a qual toda a gente tem vindo a assobiar para o lado) consegue justificar o resultado artisticamente desastroso de Todo o Dinheiro do Mundo. É um filme sem ritmo, sem chama, sem alma, que enche muito a vista com filtros e enquadramentos e composições e paisagens e mansões e fotogenia para esconder que Scott não sabe sequer qual é a história que quer contar entre as muitas que o filme abre. Um drama sobre uma família disfuncional? Um policial “procedural” sobre a busca dos raptores? Uma denúncia moralista do capitalismo desenfreado? O filme nunca escolhe, quer ser tudo para toda a gente, e no processo acaba por não ser nada.

Não é inteiramente surpreendente — Scott nunca esteve à vontade em histórias “modernas”, tradicionais, o seu forte é a imersão em universos imaginados ou recriados, da Roma antiga de Gladiador à distopia negra de Blade Runner ou o futuro industrial-corporativo de Alien. (E mesmo aí os últimos exemplos, à possível excepção de Prometheus e Perdido em Marte, não têm sido felizes.) Há uma velha piada fácil, redutora até, que diz que Scott é mais um arquitecto paisagista do que um realizador — que não é inteiramente verdade mas à qual filmes como este (ou Hannibal ou Gangster Americano ou Amigos do Alheio…) parecem vir dar razão. Todo o Dinheiro do Mundo é uma manta de retalhos cosidos ao deus-dará e o ponto em que a carreira desigual de Ridley Scott bate no fundo dos fundos. Que Michelle Williams, certeira como sempre, e Christopher Plummer, com a classe que ganhou com o tempo, dele saiam incólumes com interpretações sólidas é um milagre.

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