Conselho Nacional de Ética "chumba" estatuto do “maior acompanhado”

Parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida era aguardado. Apesar de considerar que a ideia é boa, órgão considera que a proposta do Governo precisa de ser "melhorada". Recomenda-se "maior salvaguarda do bom uso do mandato do acompanhamento”, explica presidente.

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NELSON GARRIDO

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) chumbou o estatuto do “maior acompanhado”, uma proposta de lei com que o Governo quer substituir os actuais regimes que regulam as incapacidades das pessoas maiores de idade.

O parecer já foi comunicado ao Ministério da Justiça e não é vinculativo. “O Governo fará o que entender” com as críticas do CNECV, diz o seu presidente, Jorge Soares, ao PÚBLICO.

O CNECV não está “contra a ideia" da proposta de lei, "que é boa”, sublinha o presidente. Mas considera que é preciso melhorar o diploma, tornando mais precisos alguns aspectos da lei, até porque “quanto mais impreciso for maior será a margem de discricionariedade” e menos bem será aplicado o seu propósito.

A proposta do Governo tem como objectivo dar “primazia à autonomia da pessoa, cuja resposta deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível”, substituindo o conceito de “incapazes” pelo de “maiores acompanhados”. A sua aprovação implicaria uma “mudança profunda” de dois regimes — os actuais regimes de interdição e de inabilitação — para um único, o de maior acompanhado. Alterava-se também o modelo de substituição para o de acompanhamento, “em que a pessoa incapaz é simplesmente apoiada na formação e exteriorização da sua vontade e não substituída na sua vontade”. A proposta iria alterar “uma vintena de diplomas” e os artigos 138.º a 156.º do Código Civil, lembra o CNECV.

Jorge Soares refere que as reservas do CNECV se prendem com aspectos como “a questão do exercício da autonomia e do acompanhamento”. Explica: “O importante não é dar os poderes a uma pessoa que possa falar por outra, mas que possa mais fielmente interpretar qual seria o sentido da vontade da pessoa que está incapaz ou inabilitada. Estamos a referir-nos muitas vezes a questões de natureza patrimonial e de saúde, por isso é preciso haver maior salvaguarda do bom uso do mandato do acompanhamento.”

Num parecer de 8 de Janeiro, mas que foi disponibilizado na Internet no final da semana passada, o CNECV elenca dez motivos para as “reservas de natureza ética que impedem” a “aprovação” da proposta de lei do Governo: “caracterização insuficiente das situações de incapacidade diminuída; distinção pouco nítida quanto ao domínio de actuação autónoma no âmbito dos actos de natureza pessoal e das diferentes situações de índole patrimonial”; “existência de ambiguidades que retiram coerência ao estatuto na perspectiva adoptada, suscitadas pela terminologia ‘poderes do acompanhante’, quando o regime deveria focar-se na determinação do âmbito da limitação da autonomia do acompanhado e na melhor forma de assegurar a sua protecção”; ou “marginalidade e regime lacunoso do ‘mandato com vista a acompanhamento’”, o que “que deveria ser central no estatuto do maior acompanhado”, são alguns deles.

Ao PÚBLICO, o presidente do CNECV explica que a proposta segue uma tendência internacional de ter uma legislação mais abrangente e que obedeça ao primado da autonomia. Porém, tem “alguns desajustamentos” entre a intenção e a prática “do consentimento esclarecido nas limitações do exercício da vontade em que o acompanhado se encontra”. E conclui: “O regime deveria focar-se mais na autonomia do acompanhado e na melhor forma de assegurar a protecção do acompanhamento.”

Embora reconheça a “conveniência” da “mudança de paradigma”, o CNECV, no seu parecer, refere outras razões que levaram ao “chumbo” da proposta, como a “utilização de terminologia sobre afecções mentais e perturbações do comportamento imprecisas e pouco consentâneas com o conhecimento científico actualizado” ou o “deficiente enquadramento de alguns preceitos, nomeadamente os que se relacionam com o internamento e as medidas anticoncepcionais, que são potencialmente lesivos do direito à liberdade e do direito de procriar”.

A revisão do regime das incapacidades dos adultos começou a ser planeada a propósito das celebrações dos 50 anos do Código Civil, com a colaboração das faculdades de Direito das universidades de Lisboa e Coimbra. O resultado foi entregue em Abril do ano passado à ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, pelos professores Pedro Romano Martinez e Rui Manuel de Figueiredo Marcos, e pelos especialistas em Código Civil António Menezes Cordeiro e António Pinto Monteiro. Aguardava-se o parecer do CNECV.

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