Há refugiados presos em contentores e traficados como escravos

A Líbia acolhe milhares de refugiados em condições desumanas. Dois deles, eritreus, descrevem à Al-Jazira o “inferno” por que passam todos os dias.

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Um grupo de refugiados resgatados da Líbia Stefano Rellandini

São torturados, vendidos, explorados, passam fome e frio. Viajaram milhares de quilómetros na esperança de uma vida melhor, mas tudo o que encontraram até agora foi medo e desilusão. Entre os mais de 700 mil migrantes que estão retidos na Líbia, em condições consideradas desumanas, contam-se Sami e Yonathan Tekle, dois refugiados eritreus que conseguiram falar com uma jornalista da Al-Jazira através de um telemóvel clandestino, às escondidas dos seus captores. A reportagem em que contam a sua história na primeira pessoa foi publicada nesta sexta-feira.

Sami, um refugiado eritreu de 18 anos, viajou mais de 3600 quilómetros desde a sua casa na Eritreia até Trípoli, na esperança de chegar à Europa. Saiu quando tinha 15 anos; primeiro foi até à Etiópia, depois até ao Sudão, até ser levado ilegalmente para a Líbia. No meio de tudo isto, foi enganado e obrigado a pagar quantias elevadas aos contrabandistas.

A Líbia é uma das zonas de transição dos migrantes e dos refugiados que tentam chegar à Europa pelo mar, fugindo de conflitos armados e de pobreza. As revelações da existência de um mercado de tráfico humano geraram reacções de repulsa e de indignação nas embaixadas líbias espalhadas pela África e pela Europa.

Na fronteira com a Líbia, Sami foi apanhado e pediram-lhe que pagasse ainda mais, uma quantia adicional equivalente a cerca de cinco mil euros. “Mentiram-nos. Bateram-nos com paus e com uma mangueira. Electrocutaram-nos. Dissemos-lhes que não tínhamos dinheiro, mas isso não os impediu de nos baterem”. 

Foi então levado para a cidade líbia de Bani Ualide, onde ficou detido num centro ilegal, a sobreviver com um único pedaço de pão por dia – Sami fala em “tortura física”, mas a pior, diz, era a mental.

Para “dar o exemplo”, agrediam-nos, electrocutavam-nos, entornavam-lhes óleo quente em cima e queimavam-nos. “Vimos algumas pessoas morrerem ao serem torturadas. O meu amigo morreu à minha frente depois de ser electrocutado. Ele veio comigo e sobrevivemos a uma jornada pelo deserto para ele acabar por morrer como um escravo prisioneiro”, lamenta Sami. “Eles viraram-me ao contrário e bateram-me por todo o lado e electrocutaram-me. Ligaram à minha mãe enquanto eu estava a ser torturado para que ela pudesse ouvir os meus gritos”.

As mulheres e as crianças eram mantidas num sítio diferente, mas não muito longe, já que Sami conseguia ouvir os gritos enquanto eram violadas – o que resultava, muitas vezes, em gravidezes não desejadas e crianças nascidas em cativeiro.

“Não podia imaginar que as pessoas poderiam ser tão cruéis e desumanas”

Depois de a mãe pagar o resgate, vendendo a casa na terra natal e pedindo ajuda à família, Sami conseguiu sair, nove meses depois de ter entrado no centro ilegal, mas nem por isso deixou de estar preso. Foram vendidos e revendidos, entre voltas e mais voltas, e iam-lhes sempre pedindo dinheiro em troco de liberdade.

Alguns meses depois de ter saído, levaram-no de volta para Bani Ualide. Desta feita ficaram num contentor com 320 pessoas (homens, mulheres e crianças, incluindo bebés, muitos deles nascidos fruto das violações dos captores líbios) e uma única casa de banho.

“A parte mais assustadora era não saber se alguma vez nos iriam libertar”, conta Sami à Al-Jazira, revelando que passava fome e havia dias em que nem via a luz do sol. Um dia, um homem líbio levou-o para fazer trabalhos agrícolas, em troco de comida e abrigo. Sami foi, e conseguiu fugir dois dias depois – em Setembro de 2017, conseguiu chegar a Trípoli, onde se registou no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Até hoje, trabalha numa mesquita, e é aí que dorme.

“Saí da Eritreia em busca de liberdade e paz. Não queria viver em ditadura, e foi por isso que vim embora. Sabia que sair da Eritreia iria ser difícil. Mas não podia imaginar que as pessoas poderiam ser tão cruéis e desumanas”, desabafa. Se soubesse, não teria fugido do país, deixando a mãe afundada em dívidas.

“Não sabemos se alguma vez vamos conseguir sair daqui”

Yonathan Tekle, de 24 anos, conta uma história ssemelhante. Fugiu da Eritreia em Dezembro de 2016 e a fuga tornou-se mais perigosa e cara do que alguma vez poderia ter imaginado. No Sudão, foi torturado e agredido. “Liguei à minha família e disse-lhes que estávamos no inferno, que precisávamos de dinheiro ou [os contrabandistas] não nos deixariam ir embora”. Seis meses depois, conseguiu juntar o dinheiro exigido para viajar até à Líbia, onde também ficou detido – foi aí que percebeu que tinha sido vendido e que teria de pagar ainda mais. “Aperceber-me que tinha sido vendido como um escravo foi a pior sensação de sempre”, salienta.

É na Líbia que ainda continua preso. “As famílias da maior parte das pessoas que aqui estão comigo não sabem nada delas. Ninguém sabe se estão vivas ou mortas”, diz, lamentando as condições em que são mantidos em cativeiro. “Com a fome, ainda se sente mais o frio. Dormimos e acordamos no mesmo sítio, à espera do nosso destino. Não sabemos se alguma vez vamos conseguir sair daqui." 

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