William Kentridge: desenhar começa nos pés

Foi a primeira vez que o artista sul-africano aceitou fazer uma exposição que tem por foco o seu trabalho para teatro e ópera. Basta y sobra mostra como as suas ideias se expandem por toda a parte. No Museu Rainha Sofia, em Madrid, até meados de Março.

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I am not me, the horse is not mine (2008): o corpo performático do artista atravessa toda a sua obra cortesia do artista

Foi com surpresa que William Kentridge reagiu ao convite do Museu Rainha Sofia, em Madrid, para que abrisse os arquivos e a partir deles fizesse uma exposição baseada nos seus trabalhos para teatro e ópera. Aparentemente nunca lhe passara pela cabeça autonomizar as suas criações para palco — cenários, figurinos, direcção artística — da restante produção plástica que fez dele uma referência de peso na arte contemporânea a partir da década de 1990. Mas, pouco a pouco, e perante as sugestões da equipa do museu, em particular dos comissários, Manuel Borja-Villel e Soledad Liaño, as reservas iniciais deram lugar a um entusiasmo que o fez envolver-se com gosto no guião de Basta y sobra (até 19 de Março).

Afinal, sempre se apresentara como actor e performer, tanto nos seus filmes como nas conferências que se transformaram numa das suas imagens de marca, e até o seu cinema está carregado de uma teatralidade que procura pelo menos desde que, em meados da década de 1970, conciliava o curso de Políticas e Estudos Africanos na Universidade de Witwatersrand (Joanesburgo) com os primeiros projectos como intérprete, encenador e cenógrafo na companhia amadora a ela ligada.

“O que a Soledad Liaño encontrou, quando começou a mexer nos arquivos, foi uma verdadeira gruta de Ali Babá de material inédito”, diz ao Ípsilon João Fernandes, o curador português que desde 2013 é subdirector do Museu Rainha Sofia. Recortes para filmes e figurinos, maquetas, desenhos, esboços, instalações, registos das suas produções para teatro e ópera, marionetas incrivelmente expressivas...

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Marionetas para Woyzeck on the Highveld (1992), primeira colaboração de Kentridge com a Handspring Puppet Company, um grupo de teatro abertamente anti-apartheid Joaquin Cortés/román lores/museu nacional rainha sofia

“Quando começámos a ver o que havia, percebemos de imediato que era um corpo vasto de trabalho que nos ia permitir entrar na intimidade de um processo criativo.” Uma intimidade que o visitante vai devassando ao percorrer a exposição, estabelecendo ligações entre filmes e peças de teatro, entre desenhos e óperas, ao longo de uma infinidade de salas que sugam o público para vitrines carregadas de pequenas figuras, colagens de parede que nos lembram que também Portugal teve um passado colonial e televisões e telas de projecção onde passam algumas das produções que Kentridge, hoje com 62 anos, assinou para a Metropolitan Opera de Nova Iorque ou para o teatro La Scala de Milão.

Três peças, quatro óperas

Basta y sobra segue um guião baseado em três peças de teatro — Woyzeck on the Highveld (1992), Faustus in Africa! (1995) e Ubu and the Truth Commission (1997) — e quatro óperas — Il ritorno d’Ulisse (1998), The Nose (2010) e Wozzeck (2017) — que partem de textos canónicos da cultura europeia de que Kentridge se apropria para os devolver, devidamente recontextualizados e reinterpretados, aos seus públicos, seja o das galerias e museus, seja o das salas de cinema e de espectáculo. Isto porque, explica João Fernandes, o mesmo texto é decantado por vários meios e linguagens — um romance ou uma peça dramatúrgica dá origem a um filme que dá origem a uma ópera que dá origem a uma série de desenhos (no caso de Kentridge a ordem dos factores não é importante).

“Ele cria um teatro muito particular para as grandes narrativas universais”, diz o subdirector. Um teatro em que é capaz de questionar todo o ideal transformador da sociedade. É assim em The Nose (O Nariz), ópera satírica de Dmitri Chostakovich a partir do texto homónimo de Nikolai Gogol, em que o artista sul-africano começou a trabalhar em 2006, com uma série de 30 gravuras, e em que faz uma homenagem às vanguardas russas, recorrendo a uma linguagem plástica que evoca, entre outros, Kazimir Malevich.

O Nariz é um dos contos de Gogol em que o absurdo, de que Kentridge tanto gosta, é arrebatador – conta a história de um oficial cujo nariz decide tornar-se independente da cara – e foi publicado pela primeira vez em 1836. Chostakovich pega nele dez anos depois da Revolução de Outubro de 1917, que põe fim à Rússia dos czares, e transforma a sua ópera numa crítica velada ao governo bolchevique que dela saiu. Precisamente um século depois da primeira edição de Gogol, Estaline dá início a uma série de processos sumários que visam eliminar todos os seus rivais e antigos aliados. Entre eles está, por exemplo, Nikolai Bukharin, que acaba executado em 1938, acusado de comprometer as conquistas da revolução de 1917 e de conspirar contra o Estado soviético. “Kentridge olha para o melhor da utopia e do sonho revolucionário sem ter receio de ver o seu lado negro. Bukharin foi um dos heróis de uma revolução que se transforma por completo”, acabando por conduzir a um regime totalitário.

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Joaquin Cortés/román lores/museu nacional rainha sofia

Também em heróis trágicos se concentram Woyzeck on the Highveld (1992) e Il ritorno d’Ulisse (1998), esta última ópera apresentada na Culturgest em 2000 (a mesma sala lisboeta já tinha programado Faustus in Africa!). Nesta versão reduzida da ópera que Monteverdi estreia em 1640, três anos antes de morrer e quando vivia há já 12 num mosteiro, Ulisses está num hospital de Joanesburgo, visivelmente fragilizado, longe da aura divinizada que tem no poema de Homero.

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Joaquin Cortés/román lores/museu nacional rainha sofia

Woyzeck on the Highveld (1992), por seu lado, resultou da primeira colaboração de Kentridge com a Handspring Puppet Company, um grupo de teatro abertamente anti-apartheid, e adapta ao contexto sul-africano de então — o de um país que vivera durante décadas sob um regime de segregação racial — a obra inacabada de Georg Büchner (1813-1837), que se baseia em factos reais, tem por cenário a Alemanha e por protagonista um soldado raso que aceita ser cobaia de um médico para conseguir sustentar a mulher e o filho.

No Woyzeck de Kentridge, o soldado passa a operário negro e o ambiente em que se move é o da paisagem que o artista desenha, carregada de poços de extracção de petróleo, de minas e de resquícios de fogos.

O artista regressou no Verão passado e no Festival de Salzburgo ao mesmo texto de Büchner, mas desta vez através da ópera Wozzeck, do compositor austríaco Alban Berg, escrita entre 1914 e 1922. O pano de fundo já não é a África do Sul, como na sua versão teatral original, mas a Primeira Guerra Mundial — geografias diferentes mas a mesma destruição, a mesma violência, a mesma desolação.

“Há uma enorme confluência de meios na obra de Kentridge”, diz João Fernandes, defendendo que o exercício mais proveitoso quando se trata de a tentar compreender não é procurar marcas distintivas do desenho para o filme, da colagem para a performance, da conferência para o teatro ou para a ópera, mas o de identificar continuidades e contaminações que produzem uma leitura una, harmoniosa, que é tudo menos empobrecedora.

Ao demonstrar esse contínuo afinado, acredita o curador português, Basta y sobra fez com que o próprio artista mudasse a maneira como olha para o seu trabalho: “Kentridge costumava dividi-lo entre o que faz para as galerias e os museus, o que faz para a sala de cinema e o que propõe em palco, na ópera ou no teatro. Esta exposição permitiu unificar tudo, demonstrou a sua coerência quando lida com todos estes espaços de apresentação que são também espaços de representação.”

Para essa prática unificadora de que fala João Fernandes contribui a constância dos temas abordados e o modus operandi a que recorre para os desenvolver. O artista pega em alguns dos grandes textos da cultura europeia e lê-os à sua maneira, tornando-os permeáveis, sobretudo, à história e à contemporaneidade sul-africanas. Parte de uma experiência pessoal — que pode ser real ou de um protagonista criado por Johann Wolfgang Goethe ou Alfred Jarry — para lidar com realidades universais que procura denunciar sempre: o autoritarismo e a tirania que limitam as liberdades individuais, a corrupção, a mesquinhez, a mediocridade, as convenções sociais que transformam de imediato o que é diferente em algo a combater, que fazem do que a maioria não compreende um inimigo declarado.

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Joaquin Cortés/román lores/museu nacional rainha sofia

“Ele parte sempre do particular para o geral. Cada pessoa é um documento histórico.” E é esta abordagem, argumenta João Fernandes, que torna a sua obra tão universal e tão competente na forma como comunica: “É muito interessante a relação que William Kentridge estabelece entre o que é íntimo e o que é histórico [...]. O que ele faz é interrogar a intimidade na história e a história a partir da intimidade. É por isso que o seu teatro tem esta capacidade de emocionar.” Por isso e porque, garante, o artista não tem medo da beleza. “Kentridge usa muito a emoção em tudo, mas ela é um recurso particularmente importante no trabalho cénico.”

Tal como a emoção, o desenho está em toda a obra do sul-africano — está antes, durante e depois de tudo acontecer, garante o subdirector do Rainha Sofia. “Ele precisa do desenho para pensar, para falar, para dançar, para construir um texto.” O desenho que é feito com o corpo todo, gosta de frisar. “O desenho e a performance têm em comum o facto de serem actividades do corpo”, disse o artista aos jornalistas na inauguração de Basta y sobra, explicando que é muito importante perceber em que sítio do corpo o gesto começa, se na cintura, se na pélvis ou no ombro. “O desenho tem lá dentro uma dança escondida. [...] Podemos pensar na performance como um desenho a quatro dimensões.”

Um homem branco num continente negro

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Vista de uma das salas da exposição. Entre os desenhos há reproduções de fotografias e outros documentos associados à escravatura. Um deles traz de imediato à memória as gravuras dos porões dos navios negreiros que cruzaram o Atlântico durante séculos Joaquin Cortés/román lores/museu nacional rainha sofia

Na performance, qualquer que seja a sua forma, Kentridge consegue cruzar a cultura popular com a erudita de forma extraordinária, defende o curador português, dando como exemplo a maneira como mistura a música do cabaret berlinense dos anos 1920/30 com a que se faz hoje na África do Sul. E isto sem deixar de se mostrar consciente da sua condição de homem branco num continente negro e sem deixar de reflectir sobre uma série de questões internas ao seu trabalho: o que é um desenho? O que é uma narrativa? Como é que desenho, narrativa e corpo se cruzam?

Foi o que fez, lembra João Fernandes, na conferência que acompanhou a inauguração da exposição e para a qual convidou o colombiano Rolf Abderhalden, artista e encenador de quem foi colega em Paris e que, por acaso, estava em Madrid a trabalhar num projecto que envolve o Museu Rainha Sofia e a companhia que dirige, o Mapa Teatro. 

Lendo excertos do texto que o sul-africano tem vindo a escrever ao longo da vida, Kentridge e Abderhalden fizeram daquela conferência um encontro de amigos. “Foi um lindíssimo momento de teatro, completamente espontâneo. E nele William Kentridge voltou a mostrar como o seu próprio corpo, muito performático, faz parte do seu trabalho. [...] Ensinou-nos que desenhar começa nos pés, como dançar.”

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Habituado a que lhe façam perguntas sobre o carácter político da sua obra, o artista costuma dizer que o que lhe interessa é olhar para o mundo no que tem de mais absurdo e contraditório, deixando que as ideias se expandam. A arte, garante, é uma forma de fugir ao mundo, mas é também uma maneira de descrever o que aqui se passa.

E no seu teatro, em particular, o divertimento é ingrediente fundamental desse retrato. “É muito interessante vê-lo trabalhar, porque ele realmente diverte-se com o que faz e está disponível para ser espontâneo.” Aquando da montagem da exposição, recorda João Fernandes, Kentridge lembrou-se de desenhar nas paredes numa das salas consagradas a Ubu and the Truth Commission (1997), peça de Jane Taylor que o artista encena sem perder de vista o absurdo de Ubu roi (1896), de Alfred Jarry. “Chegou e em três horas, em cima de um escadote, fez aqueles grandes desenhos murais do Ubu. E depois decidiu deixar lá o escadote, iluminado, com o filme a passar ao fundo. Criou uma sala maravilhosa com uma extraordinária economia de meios.” Montar Basta y sobra, conclui o curador, obrigou a uma “dança com o artista” em que o factor surpresa pesou muito. E tudo porque “William Kentridge é muito bom bailarino”.

O Ípsilon viajou a convite do Turismo de Espanha

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