A Polónia e a “crise existencial” da UE

A Polónia de hoje não é um problema isolado. Foi precedida pela Hungria.

Reserve as sextas-feiras para ler a newsletter de Jorge Almeida Fernandes sobre o mundo que não compreendemos.

Continua correr, em câmara lenta e sem estridência, o conflito entre a Polónia e a União Europeia. Para a UE não é um problema conjuntural, é uma “crise existencial”. E o êxito da sua estratégia não é garantido. Em Dezembro, perante as violações e a erosão do Estado de direito — a começar pela independência judicial — a Comissão Europeia desencadeou o recurso ao Artigo 7 do Tratado de Lisboa, que permite suspender o direito de voto de Varsóvia. Bruxelas exige medidas no prazo de três meses. É uma iniciativa sem precedentes. Varsóvia promete “não recuar um passo” em nome da sua soberania. No entanto, ambas as partes procuram evitar, usando uma metáfora catalã, o “choque de comboios”.

Varsóvia já passou algumas “linhas vermelhas”. O projecto político animado pelo seu “homem forte”, Jaroslaw Kaczynski, e pelo partido Lei e Justiça (PiS) não se limita ao reforço do poder governamental, nem a manifestações avulsas de nacionalismo. O seu projecto é criar um “Estado forte” em nome do nacionalismo polaco e em oposição aos valores liberais europeus. É uma “revolução” de alto a baixo da sociedade polaca, passando pelas estruturas políticas, pela escola, pela família, pela cultura e pela revisão da História.

Para reformar a sociedade, o regime precisa de neutralizar todos os contrapoderes, entendidos como travão à “revolução conservadora”. A independência do poder judicial é um freio e um desafio à “vontade popular” expressa na urna de voto. É aquilo a que Kaczynski chama o “impossibilismo legal”. Não tendo maioria suficiente para uma revisão constitucional, impôs inconstitucionalmente uma reforma da Justiça em precipitadas sessões nocturnas no Parlamento, naquilo a que oposição chamou um “golpe palaciano”.

Em segundo lugar, a Polónia de hoje não é um problema isolado. Foi precedida pelo regime de Viktor Orbán na Hungria, muito mais avançado em termos de “iliberalismo”. Para lá dos movimentos populistas pela Europa fora, Kaczynski e Orbán parecem ter um desígnio comum: criar um bloco de resistência dentro da UE a partir da Europa Central e do Grupo de Visegrado — Polónia, Hungria, Eslováquia, República Checa. A crise da imigração é um argumento poderoso. Gostaria ainda, o que é menos provável, de atrair para este bloco os países bálticos, de forma a cimentar uma linha de fractura leste-oeste.

Viktor Orbán

A UE tem dois pontos fracos na sua posição. É acusada de ter “dois pesos e duas medidas”: deixou passar — com pequenas reprimendas — a deriva autoritária da Hungria, hoje consolidada, o que em parte se terá devido ao facto de o partido de Orbán, o Fidesz, fazer parte do Partido Popular Europeu e gozar de sólidos apoios na Alemanha (a CSU da Baviera) e na Áustria.

O segundo é a dificuldade de fazer aprovar sanções contra a Polónia, porque tal exige unanimidade no Conselho Europeu e a Hungria garante o seu veto. Neste caso, a UE sairia enfraquecida, por inoperância da ameaça. Perante este risco, alguns países ocidentais, entre eles a Alemanha, encaram ligar a atribuição dos fundos europeus do quadro 2021-27 ao respeito pelo Estado de direito. É outra ameaça, forte, mas difícil de cumprir.

O politólogo Jacques Rupnik sublinha que esta crise não é um fenómeno passageiro. “A concepção nacional-populista de nação impõe-se na Europa Central. (...) Com o risco de causar um divórcio entre o Ocidente e o Leste da nossa União Europeia, radicalizam-se as concepções da nação — liberal do Ocidente, orgânica no Leste.”

A UE está encostada à parede — entre deixar transformar o “clube democrático” num albergue para regimes semi-autoritários, e por ela subsidiados, e o risco de medidas drásticas. Reside aqui a “crise existencial” que põe em causa os seus próprios fundamentos.

A UE deve assumir todos os fardos. Insiste no New York Times Charles Kupchan, antigo responsável pela Europa na Casa Branca de Obama: “Com os Estados Unidos ‘desaparecidos em combate’, cabe à União Europeia defender os princípios e as práticas da sociedade democrática. Estão em causa os destinos da Polónia, da Europa e do Ocidente.”

Viktor Orbán sobe a parada e anuncia para 2018 “o ano das grandes batalhas” contra os valores multiculturais da Europa Ocidental, denunciando o “espectacular fracasso” da política de imigração da UE e apelando a uma Europa forte “graças à preservação das suas raízes cristãs”.

Em Bruxelas, as preocupações alargam-se às eleições italianas de Março, que poderiam abrir uma dramática brecha, desta vez no Ocidente europeu.

À procura de compromisso

Nem Bruxelas nem Varsóvia desejam o choque. Nem Kaczynski pode dizer aos polacos que dispensa os fundos europeus, nem os alemães querem abrir um contencioso com um grande país vizinho e muito susceptível à memória histórica.

Donald Tusk, polaco e presidente do Conselho Europeu, alerta os compatriotas para o risco de o PiS arrastar a Polónia para fora da UE. Diz numa entrevista a um jornal polaco: “Para o PiS, fazer parte da UE apenas diz respeito à balança de pagamentos.” “[Num cenário em que os polacos se vissem como contribuintes líquidos,] não tenho dúvidas de que um dos objectivos do PiS seria ‘libertar’ a política polaca do fardo da UE.” De Varsóvia respondem que Tusk se comporta como chefe da oposição e não como presidente do Conselho Europeu.

Esta semana houve pequenos sinais de abrandamento. Varsóvia mostrou-se aberta em dossiers como o meio ambiente... Pode ser um “começo de conversa”.

A ameaça a Varsóvia é uma faca de dois gumes. “O antieuropeísmo não é popular entre o público e a oposição pode mobilizar os votos dos que temem a actual viragem para um ‘Polexit’ psicológico”, observa o analista polaco Piotr Buras. “Mas a linguagem soberanista é uma arma poderosa numa era de incertezas e de fortes identidades. E o apelo da UE já não é tão forte quanto foi.”

De resto, não sabemos se e quando Kaczynski será obrigado a parar. Apesar de todas as derivas, a Polónia está longe de ser um país autoritário. Quanto a negociações, diz à Reuters um diplomata: “A Polónia tem de começar um diálogo sério e então veremos. O Artigo 7 pode ser aplicado com mais ou menos energia, pode estar na agenda, mas não ser decidido para já.” Mais do que uma solução rápida, poderá esboçar-se um compromisso, mais ou menos ambíguo, de coexistência com os nacional-populistas — esperando que a Polónia mude.

Sugerir correcção
Comentar