Trump desamigou Bannon e agora há uma corrida pelo coração dos "deploráveis"

Guerra entre o Presidente norte-americano e o seu antigo ideólogo é também um exercício de equilíbrio: Trump não quer perder os eleitores mais radicais e o Partido Republicano quer recuperar os mais moderados.

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Bannon chegou à campanha de Trump em Agosto de 2016 Reuters/CARLOS BARRIA

Durante um ano, entre o Verão de 2016 e o Verão de 2017, parecia que os Estados Unidos estavam a ser liderados por uma daquelas duplas que só se vêem nos livros de super-heróis e vilões: enquanto Donald Trump se lançava à garganta do sistema político norte-americano em público, através da televisão e no Twitter, o seu principal estratega, Steve Bannon, dedicava-se a semear o caos e a fomentar divisões por baixo do pano em Washington.

O objectivo era claro e até tinha sido anunciado durante a campanha eleitoral: destruir aquilo que eles e os seus apoiantes consideram ser um sistema político e mediático dominado pelos liberais de esquerda e, a partir dessas ruínas, construir um país preocupado apenas com o que acontece lá dentro e assente em fronteiras fechadas e bem vigiadas.

Essa dupla desfez-se em Agosto passado, depois de Steve Bannon ter ido longe demais no seu relacionamento com os supremacistas brancos norte-americanos, levando atrás de si toda a Casa Branca.

Charlottesville

A 12 de Agosto, uma multidão de racistas e neo-nazis manifestou-se em Charlottesville, no estado da Virginia, e um dos participantes no protesto conduziu um carro a alta velocidade contra um grupo de contra-manifestantes, matando uma mulher. Em reacção às cenas de violência, o Presidente Trump disse que "ambos os lados" tinham de repartir a culpa, numa declaração cuja paternidade foi atribuída a Steve Bannon – seis dias depois, no meio de uma onda de indignação pelas palavras de Trump, incluindo no interior do Partido Republicano, Bannon saía da Casa Branca.

Apesar de cada um ter ido para seu lado, Trump e Bannon não tiveram nenhuma discussão pública nos meses seguintes, e pouco do que ia saindo nos jornais e nas televisões sugeria uma cena como a que se desenrolou esta semana: a partir de um livro polémico escrito pelo não menos polémico jornalista, colunista e consultor de media Michael Wolff, a dupla que tinha caído do Céu para o colo de milhões na América esquecida desfez-se de uma forma tão abrupta quanto espectacular.

"Steve Bannon não tem nenhuma relação comigo nem com a minha Presidência. Quando ele foi despedido, não só perdeu o emprego como também enlouqueceu. Steve foi um funcionário que trabalhou para mim quando eu já tinha conquistado a nomeação, depois de ter derrotado 17 candidatos, muitas vezes descritos como o grupo de candidatos mais talentoso de sempre no Partido Republicano", escreveu Trump num comunicado em que reagiu a declarações atribuídas a Steve Bannon no livro "Fire and Fury: Inside the Trump White House", escrito por Michael Wolff e com lançamento previsto para a próxima semana.

Essas declarações não são menos bombásticas do que a que Trump fez sobre o homem a quem já se referiu publicamente como amigo – em particular, uma em que Bannon terá feito um comentário sobre as reuniões em que o filho mais velho de Donald Trump, Donald Trump Jr., o seu genro, Jared Kushner, e o antigo director de campanha, Paul Manafort, se reuniram com a advogada russa Natalia Veselnitskaya para discutirem informações prejudiciais para Hillary Clinton.

"Mesmo que não pensassem que era uma coisa má, antipatriótica, até mesmo traição – e eu por acaso acho que é tudo isso –, o que deviam ter feito imediatamente era alertar o FBI", disse Steve Bannon, segundo o relato de Michael Wolff.

A partir de "mais de 200 entrevistas" com membros da Administração e pessoas que falaram com esses responsáveis, o livro pinta um quadro da candidatura e da Presidência de Trump que encaixa perfeitamente na caricatura que foi sendo feita ao longo dos tempos pelos seus opositores: ninguém na campanha acreditava na vitória mesmo na noite das eleições; quem o acompanhou na candidatura só o fez para ganhar protagonismo e fazer avançar os seus planos pessoais e profissionais; Trump é um homem pouco ou nada informado, que passa a vida a gabar-se e não tem as mínimas qualificações para ser Presidente.

Para onde vão os "deploráveis"?

A publicação do livro, na próxima semana, poderá trazer ainda mais questões, mas o maior ponto de interrogação já anda a passear-se pelas notícias e pelas caixas de comentários dos sites ligados à direita ultraconservadora, às teorias da conspiração e aos movimentos racistas norte-americanos: com o fim da dupla Trump/Bannon, quem ficará de pé como o verdadeiro representante dessa América anti-sistema? O candidato que prometeu um muro e derrotou a cara desse sistema, Hillary Clinton (que chamou a muitos deles "deploráveis"), ou o ideólogo que não desiste de ir sempre o mais longe possível na defesa da causa nacionalista?

A julgar pela forma como os media mais conservadores trataram o fim público da relação, os relatos sobre a influência de Bannon parecem ter sido manifestamente exagerados – e Trump deverá manter a sua base de apoio praticamente intacta.

"A lealdade dos media da direita sempre foi para com Trump, e não para com Bannon ou as ideias dele", disse ao Politico o comentador Charles Sykes, um conservador conhecido pela sua oposição a Trump. "Olhando para trás, é interessante perceber o quão desatento foi Bannon. Ajudou a criar um ecossistema de media pró-Trump que exigia lealdade, e não consistência ideológica. Agora que está a ser visto como desleal, e talvez até perigoso, vai receber o mesmo tratamento que deu aos globalistas do establishment", disse Sykes.

No site Breitbart (presidido por Bannon e co-responsável pela eleição de Trump), a tarefa de dizer aos tais "deploráveis" que não têm de fazer uma escolha entre os dois calhou a Raheem Kassam, o editor da redacção em Londres. "Se olharmos para o que Steve Bannon está a fazer, vemos que o Breitbart é o único site de notícias no mundo que verdadeiramente apoia a agenda Make America Great Again, e não temos de ficar do lado de um ou do lado do outro", disse Kassam.

Impacto nas eleições em Novembro

Em causa está a organização interna do Partido Republicano e as suas hipóteses de manter a maioria tanto na Câmara dos Representantes como no Senado, nas eleições para o Congresso em Novembro deste ano.

A liderança do partido sempre olhou para Bannon como um perigo na Casa Branca, como alguém que faz tudo para minar qualquer esforço para puxar Trump um pouco mais para o centro – para eles, o fim da relação é uma bênção, e uma oportunidade para voltarem a olhar nos olhos os eleitores menos radicais do Partido Republicano, que se assustaram com a influência de Bannon. 

Essa guerra entre a liderança do Partido Republicano e a ala Bannon teve uma batalha importante na eleição especial para o Senado no Alabama, em Dezembro.

Durante as primárias no Partido Republicano e na eleição geral, Bannon esteve muito envolvido na campanha de Roy Moore, o juiz acusado por várias mulheres de ter abusado sexualmente delas quando eram adolescentes; por seu lado, a liderança do Partido Republicano e o próprio Trump apoiaram nas primárias Luther Strange, um candidato menos radical do que Moore – só depois de Strange ter sido afastado é que Trump deu todo o seu apoio a Moore contra o candidato do Partido Democrata, Doug Jones, que acabou por vencer.

E é por causa dessa derrota (a primeira do Partido Republicano em 30 anos no Alabama) que Trump acusa agora o ex-amigo Bannon de não representar a sua base de apoio – "Ele só anda nisto para benefício próprio", disse Trump esta semana, num esforço para apresentar Bannon como um oportunista desleal perante os seus apoiantes mais radicais, e de não os perder nas eleições Presidenciais de 2020. É um jogo de equilíbrio: no outro lado do arame, a liderança do Partido Republicano tem a tarefa de aplaudir o afastamento do radical Bannon, para recuperar eleitores mais moderados nas eleições para o Congresso em Novembro deste ano.

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