Quando a Justiça é quase tão importante como os votos

O primeiro-ministro só telefonou à vencedora, mas está disposto a falar com quem formar governo, desde que se submeta à lei. Os partidos com líderes detidos ou em Bruxelas sentem-se legitimados para um regresso à Generalitat.

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O resultado das eleições de quinta-feira mantém o clima de incerteza que há meses se vive na Catalunha REUTERS/Eric Gaillard
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Mariano Rajoy não se mostrou disponível para ceder um milímetro às aspirações dos independentistas EPA/JAVIER LIZON
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Carles Puigdemont em Bruxelas: poderá o ex-líder da Generalitat voltar a Espanha e não ser preso? REUTERS/Francois Lenoir

“Bom Natal a todos.” Foi assim que o primeiro-ministro espanhol se despediu, no fim de uma conferência de imprensa em que foi fiel a si próprio, mostrando-se descontraído na ressaca de uma dura derrota. Durou meia hora a sua avaliação dos resultados das eleições autonómicas da véspera, na Catalunha, e as televisões lá interromperam os directos do sorteio da Lotaria do Natal e as reportagens com os vencedores dos prémios que enlouquecem tantos espanhóis nesta altura.

Mariano Rajoy pensou que puniria os independentistas pela ousadia — “era a minha obrigação”, “os políticos devem submeter-se à Justiça e não o contrário”. Errou, mas garante que não se arrepende e que avalia de forma positiva a aplicação do artigo 155 da Constituição, que lhe permitiu destituir o parlamento e o governo de Carles Puigdemont e convocar estas eleições.

“Eu não pus em marcha o 155 para ganhar um voto a mais, mas porque num lugar de Espanha alguém decidiu que a Constituição não valia e declarou a independência”, afirmou, admitindo que voltará a aplicar o 155 se um futuro governo insistir na via unilateral. De acordo com o previsto, o artigo deixa de vigorar assim que haja um governo investido na Catalunha.

Recusando retirar conclusões nacionais e falar em legislativas antecipadas, algo que não poderá fazer para sempre (o Cidadãos, de Albert Rivera, não o vai deixar), Rajoy explicou só ter telefonado a Inés Arrimadas, líder do C’s na Catalunha, e a mais votada (apesar de não ter apoios para governar), para lhe dar os parabéns.

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“Terei de falar com a pessoa que exerça na realidade a governação, que tenha possibilidades de o fazer e que, por isso, esteja em condições de falar comigo”, disse, recusando responder às interpelações dos independentistas. Marta Rovira, da ERC, pediu-lhe que se “sente à mesa”; Puigdemont sugeriu um encontro em Bruxelas ou na Moncloa, desde que não seja detido.

Rovira, que fala em nome de Oriol Junqueras (o ex-vice de Puigdemont permanece detido, acusado como todo o governo cessado de “rebelião, sedição e desvio de fundos”), fez por esquecer o facto de a ERC ter recusado reeditar a coligação com Puigdemont. A “número dois” da ERC, uma das seis pessoas que o juiz Pablo Llarena anunciou esta sexta-feira que serão investigadas por causa do referendo, afirmou estar “à disposição de todas as negociações oportunas” para obter o regresso de Puigdemont ao país. “Não contemplamos outra alternativa à lista do president”, diz.

Para não deixar dúvidas sobre a vontade dos eleitores, Rovira recordou que estas são as quartas autonómicas consecutivas em que os partidos favoráveis à independência mantêm o apoio maioritário. “Não falemos dessa opção como se fosse algo folclórico. A opção pela República é um mandato legítimo e legal.”

Mas tal como Puigdemont, também Rovira e a ERC fazem marcha atrás. Se pedem negociações é porque assumem que o que fizeram entre Setembro, quando aprovaram as Leis do Referendo e da Transitoriedade, e Outubro, quando organizaram a consulta da independência e a declararam, não chega. É tempo de negociar, finalmente, um referendo, como sempre pediram a Madrid, sabendo que para isso será preciso alterar a Constituição.

Horas depois de tanto Inés Arrimadas como o líder nacional do C’s, Albert Rivera, terem assumido que, apesar da vitória, não têm possibilidades de obter uma maioria para a investidora, a candidata mais votada pôs em dúvida que ERC e Juntos pela Catalunha cheguem a apoio para formar governo. “Conheço-os”, disse, pedindo “muita calma”. “Já veremos se pode ser presidente ou não”, afirmou sobre Puigdemont, “já veremos se pode ou não voltar”.

Não há dúvidas que ERC e Puigdemont vão encontrar uma forma de se entender e formar governo — mesmo sem negociar com a CUP (com o partido chegariam aos 70 e à maioria absoluta), e decidam ser investidos à segunda votação, quando chega a maioria simples, ou então negociando com os “comuns”, do Podemos, como já sugerem Rovira e o ex-presidente. O problema é mesmo o regresso de Puigdemont.

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O mais difícil

O mais difícil de tudo será tirar Junqueras, Joaquim Forn, ex-conselheiro do Interior, eleito na Juntos pela Catalunha, e Jordi Sànchez (ex-líder da Associação Nacional Catalã, foi “número dois” de Puigdemont) da prisão e trazer de volta a Espanha o presidente e os quatro ex-conselheiros que com ele se encontram em Bruxelas — sem que sejam imediatamente detidos.

Todos estão só sob investigação e até serem condenados poderiam exercer como deputados ou na Generalitat. E até à distância poderiam tomar posse — mais difícil seria a Puigdemont fazer um discurso de candidatura à presidência e ser investido (algo que o regulamento obriga a que se faça presencialmente).

Puigdemont defende que “é indispensável reconhecer a realidade”, a de que os resultados do referendo foram, de alguma forma, legitimados nas urnas das autonómicas. “Se sou presidente terei de entrar no Palau da Generalitat. E o vice-presidente e os conselheiros têm de sair da prisão. Depois do 21-D, o Estado espanhol tem o dever de restituir o que o próprio Governo qualificou [em campanha] de decapitação do movimento independentista”, afirmou ainda, numa conferência de imprensa em Bruxelas.

O presidente disse “Estado” porque assim fala de Governo e de Justiça, duas palavras que em Espanha surgem demasiadas vezes associadas. Alguns especialistas têm-se interrogado sobre a prudência dos timings dos juízes. É a tal regra não escrita mas sempre cumprida até agora, que dita que “numa situação de campanha eleitoral, não se avança, espera-se”.

Ainda há tempo

Ora, os juízes devem ter mesmo esquecido esta regra, que Jordi Nieva-Fenoll recorda. A campanha já acabou, mas “é estranho” que mal se conheçam os resultados o magistrado anuncie os nomes de mais investigados, incluindo eleitos como Rovira. O catedrático de Direito Processual considera que os juízes não têm conseguido “distinguir emoções da postura racional que os deve dirigir”.

No limite, a Justiça ainda pode sair do caminho da política, deixando em liberdade os detidos e permitindo que os exilados regressem e fiquem fora da prisão.

Seja como for, ainda há tempo até 23 de Janeiro, data final para a primeira sessão do parlamento — não há motivos para Rajoy a convocar antes. É aí que se elegem os membros da mesa e o presidente, que depois inicia consultas com os líderes, antes de convocar o debate de investidura. Ninguém tem pressa. O “Bom Natal” de Rajoy podia ter sido até 8 de Janeiro (a política espanhola está de férias até aos Reis). E a porta do Palau da Generalitat continua em obras.

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