A mulher espelho

Depois da navegação às escuras em Gloria, um anterior filme de Sebastián Lelio, o caminho está mais sinalizado em Uma Mulher Fantástica, percurso de regeneração. Perdeu-se a dúvida, é tudo evidente.

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Uma Mulher Fantástica: Sebastián Lelio perto de Almodóvar

Num filme anterior do chileno Sebastián Lelio, Gloria (2013, estreado em Portugal), que valeu à actriz Paulina Garcia o prémio de interpretação no Festival de Berlim, o espectador estava no lugar instável da personagem, uma cinquentenária - divorciada, filhos que tinham ido às suas vidas, uma energia sem porto que a contivesse. Apesar da expressividade e histrionismo (e dos óculos à Tootsie da personagem...), Gloria participava de uma certa imperscrutabilidade. O espectador descobria a personagem ao mesmo tempo que o filme – procurando sinais do social e do íntimo. E o filme aventurava-se sem certezas, conduzido por uma espécie de realismo intensificado pelas possibilidades abertas à alucinação. (Havia em Gloria, para resumir, algo do silêncio das personagens e do cinema da argentina Lucrecia Martel, a realizadora de A Mulher sem Cabeça).

Uma Mulher Fantástica (2017), que voltou a dar a Sebastián Lelio prémio em Berlim (Urso de Prata para o argumento), é já feito a partir de uma posição de entronização. Desde logo porque o realizador se estabelece como especialista em personagens femininas e como director de actrizes - isto é, filma de um lugar de menos dúvidas mas talvez ainda de menos mistérios. Depois, e sobretudo, porque a personagem que cria, Marina, uma mulher transexual (interpretada por Daniela Vega, actriz transgénero) que, após a morte do homem com quem partilhava a vida, tem de enfrentar a família dele e os preconceitos com que a querem aprisionar, é cedo condenada pelo filme à inexpressividade. Sendo certo que é suposto ser um filme de libertação e de regeneração, sobre começar a viver. Mas é verdade que se torna mais determinante - e nisso Uma Mulher Fantástica é o oposto de Gloria - o facto de tratar a personagem como símbolo. Ninguém já precisa de procurar o que quer que seja, ninguém se perde e tudo se encontra no seu lugar.

Às tantas Uma Mulher Fantástica (filme com que  Lelio se coloca, então, mais perto do cinema de Pedro Almodóvar) desacelera, desiste da tensão acumulada nos planos iniciais - por exemplo, se a relação entre a música e a personagem replica o que Lelio fizera em Gloria, a concretização é agora engenhosa mas menos profunda, como naquele pedaço de (You Make Me Feel Like) A Natural Woman de Aretha Franklin...  Marina, em resumo, passa a ser menos uma personagem do que um espelho, dos preconceitos e medos dos outros (a dada altura há maior movimento, contradição e dúvida nesses burgueses arrogantes e amedrontados que a rodeiam, parecem mais vivos).

Uma Mulher Fantástica há-de, finalmente, imobilizar-se, gerindo de forma esquemática a exemplaridade dela e deles.

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