Jerusalém cidade aberta

Trump odeia a convivência multicultural. A sua inspiração não é o judaísmo americano, mas sim o fundamentalismo evangélico

O reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, violando as decisões das Nações Unidas, é um ataque contra uma cidade que, mais do que qualquer outra, é uma cidade do mundo.

No ano 2000, em Ramallah, Faisal Husseini, o falecido dirigente da OLP, num seminário coorganizado pelo IEEI (Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais) no quadro da rede EuroMesCo, defendeu que Jerusalém devia ser uma cidade aberta, com um município gerido em comum por israelitas e palestinos. Explicava Faisal Husseini que numa cidade que abriga os lugares sagrados de mais de dois mil milhões de habitantes da terra – as ruínas do Templo de Salomão, a Mesquita de Al-Aqsa ou o Santo Sepulcro – só uma gestão comum garantiria o livre acesso de todos e a paz.

É este discurso de paz, de respeito por todos os habitantes de Jerusalém e de reconhecimento do seu papel de cidade mundo, raiz de uma multitude de culturas, que leva as Nações Unidas, logo em 1947, a iniciar um processo de internacionalização da cidade, que acabaria por não ser posto em prática.

Jerusalém é muito mais que uma referência geográfica, é um símbolo da convivência milenar entre as três grandes religiões monoteístas, em todas as suas declinações, é o multiculturalismo feito mundo, a Torre de Babel como Utopia realizável. E o que é verdadeiramente fascinante, quando se passeia nas ruelas da cidade velha, é ver como apesar das guerras, das tensões brutais de sucessivas vagas de terror, de israelitas contra britânicos, de palestinos contra israelitas, de israelitas contra palestinos, Jerusalém continuou a ser um lugar de recolhimento espiritual e ninguém ousou fechá-la a uma ou outra religião.

O que Trump quer destruir está muito para além do processo de paz, o que já por si é uma enormidade, é a convivência entre judeus e muçulmanos. Isso mesmo compreenderam numerosos judeus, que protestam contra a decisão de Trump.

Enganaram-se os que pensaram que Trump era apenas um homem de negócios sem ideologia, sujeito aos humores do seu ego. Trump é um político nacionalista identitário. Como os seus congêneres europeus da Frente Nacional ou da Alternativa para a Alemanha, odeia a convivência multicultural. A sua inspiração não é o judaísmo americano, mas sim o fundamentalismo evangélico – nos Estados Unidos, 80% dos evangélicos, contra apenas 40% dos judeus, consideram que os judeus têm um direito sagrado a Jerusalém.

Benjamin Netanyahu e os seus aliados da extrema-direita israelita, na sua vontade de transformar Israel numa democracia iliberal, retirando os direitos aos árabes israelitas e destruindo os aspetos de Estado laico que ainda tem, sentem-se muito próximos de Trump. Netanyahu nega aos palestinos o direito a um Estado com capital em Jerusalém Oriental, onde a colonização israelita tem sido incentivada.

Pensou-se que a responsabilidade do poder iria moderar o extremismo de Trump, mas a realidade demonstra o contrário. A Casa Branca está ocupada por um “revolucionário”, que contesta qualquer acordo internacional que colida com a sua visão inspirada pela América da supremacia branca, mesmo que, ou sobretudo, quando tal significa ir frontalmente contra os interesses de todos.

Não é por acaso que os aliados de Trump são, para além do governo de Israel, as correntes mais reacionárias do Médio Oriente, do rei Salman da Arábia Saudita ao ditador Sisi do Egito, com quem Trump construiu uma aliança contra o Irão, de que já são vítimas o Iémen e o Qatar. O sequestro do primeiro-ministro libanês Saad Hariri em Riade visava romper a coligação governamental libanesa que integra o Hezbollah, organização xiita apoiada pelo Irão.

O reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, mesmo que isso perturbe os seus aliados árabes, tem como objetivo imediato impedir a reconciliação entre o Hamas e a Fatah, condição necessária para qualquer sucesso do processo de paz. A declaração do Hamas, apoiada pelo Hezbollah, de uma nova Intifada, viria abrir uma nova frente no conflito anti-iraniano. Uma nova Intifada, que abandone a opção pela luta pacífica que tem marcado a ação palestina, após o fracasso da segunda Intifada, com os atos de terror que gerou, seria o melhor que Trump e seus aliados poderiam esperar. O resultado de tal conflito poderia ser a expulsão de milhares de palestinos de Jerusalém e o fecho da cidade por muitos anos.

Que é possível pôr em cheque medidas da coligação Trump-Arábia Saudita, ficou claro na forma como Emmanuel Macron foi capaz de desconstruir a conspiração saudita contra o Líbano, garantindo o regresso de Hariri a Beirute e à coabitação com o Hezbollah.

A União Europeia devia inspirar-se nessa experiência para liderar uma iniciativa internacional para garantir o cumprimento das decisões das Nações Unidas sobre Jerusalém, nomeadamente a resolução do Conselho de Segurança, de dezembro de 2016, que declara não reconhecer nenhuma modificação das fronteiras de 1967, ”incluindo de Jerusalém”, a não ser como resultado de negociações. Perante um Conselho de Segurança bloqueado pelo veto americano deveria recorrer, se necessário, à Assembleia Geral das Nações Unidas.

Mas também na Europa há divisões – a República Checa seguiu os passos de Trump – pelo que um grupo de Estados poderia lançar essa iniciativa a partir dos seus membros no Conselho de Segurança: desde logo a França e o Reino Unido, apesar do "Brexit", a que se juntam a Itália e a Suécia (membros não permanentes) que já emitiram uma declaração conjunta condenando a posição americana. Portugal deveria dar todo o seu apoio a tal iniciativa, sem complexos atlantistas que já não correspondem à realidade do mundo atual e muito menos à América de Trump.

Será que tudo isto é tomar os desejos pela realidade? Com a probabilidade de uma guerra total no Médio Oriente, com o impacto que tal pode ter na Europa, talvez os dirigentes dos Estados da União se lembrem das suas responsabilidades pela segurança dos que os elegeram e sobretudo que a Europa é feita de Jerusaléns múltiplas e que o fim dessa cidade pode ser também o fim da convivência pacífica dos que aqui vivem. Jerusalém pode ser o nosso futuro. 

Antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico 

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