Belmiro de Azevedo: "Fazer coisas grandes já me deu todo o gozo possível"

Recordamos uma entrevista feita pelo PÚBLICO a Belmiro de Azevedo em Abril de 1999.

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Belmiro em 1999, quando foi entrevistado pelo PÚBLICO no Algarve Luís Ramos/Arquivo
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Republicação de uma entrevista publicada a 18 de Abril de 1999

Belmiro de Azevedo vai deixar a gestão directa dos principais negócios da Sonae dentro de um ano, mas a escolha de um sucessor para a liderança do grupo é um encargo que irá deixar ao seu Conselho Geral. Depois de quase um ano de polémicas com o PSD de Marcelo Rebelo de Sousa, o patrão do maior grupo empresarial português vê reforçado o seu desapontamento com a classe política.

Belmiro de Azevedo garante que vai "desaparecer" do Grupo Sonae dentro de um ano, pelo menos das áreas de negócio centrais do grupo. Com 61 anos, diz que a biologia tem as suas regras e que já tirou todo o gozo que tinha a tirar de fazer coisas grandes. A reestruturação anunciada pela Sonae abre caminho ao que espera ser uma sucessão tranquila. Mas a indigitação de um sucessor, dentro ou fora da família, é um legado que Belmiro deixa para o seu Conselho Geral.

No Algarve, onde o PÚBLICO o entrevistou num período de férias que goza há muitos anos no início da Primavera, o patrão da Sonae não escondeu o seu desencanto com a actual classe política. Homem que se afirma próximo do PSD e da "outra AD", prefere esperar para emitir opinião sobre Durão Barroso, mas não perdoou os ataques de Marcelo Rebelo de Sousa e sentiu-se traído, na ocasião, por muita gente que o conhecia bem e que sabia que se tratavam apenas "de factos políticos para diversão dos políticos".

Homem recorrentemente falado como um candidato em potência à Presidência da República, Belmiro de Azevedo diz que lhe falta o jeito e a paciência para o cargo. Quanto à Europa, afirma que se perdeu muito tempo, mas que o euro é uma excelente oportunidade e que Portugal tem condições para enfrentar o alargamento a Leste e a globalização dos mercados. Sobre Milosevic não tem dúvidas: não há que ter contemplações.

PÚBLICO - Apesar de 1998 ter sido um ano particularmente relevante para a Sonae, o senhor foi falado em Portugal sobretudo por questões relacionadas com a política e com a polémica com Marcelo Rebelo de Sousa. Acha que esse protagonismo é normal num país democrático?
Belmiro de Azevedo - Acho que é relativamente normal, o que não deve ser é exageradamente anormal. O mundo caminha para uma grande interdependência entre a parte económica e a parte política. Os agentes económicos já se aperceberam disso há muito tempo e os agentes políticos ainda não. Ainda há a ideia de que os políticos, porque são eleitos, têm um poder supremo e inquestionável. E é evidente que a mim me dá muito mais gozo os sucessos económicos da Sonae do que os "fait-divers" políticos.

P. - Não foi, apesar de tudo, um "fait-divers".
R. - Foi. Se bem se recordam não dei nenhum contributo em direito de iniciativa para que isso acontecesse e fui reactivo, eventualmente exageradamente reactivo - sei que na altura me chamaram arrogante e coisas desse estilo -, por que eu sou de uma terra em que se diz que quem não sente não é filho de boa gente. Sobretudo quando senti facadas pelas costas e atitudes perfeitamente inesperadas. Nós somos pessoas e esperamos que as pessoas tenham comportamento humano. Se fosse um bicho a ferrar-nos...

P. - O senhor teve falsas expectativas em relação ao professor Marcelo Rebelo de Sousa? Sentiu-as goradas?
R. - Eu disse-lhe isso mais de uma vez, disse-lho antes e disse-lho depois, que o considerava uma pessoa que tem uma enorme capacidade de análise e de poder de síntese. Declarou publicamente que a componente lúdica da política é aquilo que lhe dá gozo, portanto não devia ter sido eleito, ou não se devia ter deixado eleger, numa onda "vem alguém porque não há ninguém". Fez um erro notável em termos de carreira, ao meter-se num tipo de actividade para a qual não tinha ossatura.

P. - O senhor agora pode dizer isso, até porque Marcelo já não é o líder do PSD.
R. - Eu disse isso antes. Li no PÚBLICO um comentário de um jornalista que utilizou a palavra "liquidar". Quando utilizei a palavra "erradicar" eu devia ter posto um qualificativo. Era óbvio que se tratava de uma erradicação democrática.

P. - Há erradicações democráticas?
R. - Então não há? São as eleições. Era isso que esperava que acontecesse ao professor Marcelo. Infelizmente auto-erradicou-se antes de passar pelo teste das eleições.

P. - Na Alemanha, o ministro das Finanças, Oskar Lafontaine, caiu porque o patrão da Allianz disse "ou o ministro das Finanças ou a Allianz". Contribuiu para a queda de Marcelo?
R. - Conheço bem o patrão da Allianz e não estou a vê-lo com uma frase tão forte como essa. E apesar de tudo há uma diferença notável para Oskar Lafontaine, que é um dos últimos políticos com espinha dorsal, do ponto de vista ideológico. Em Portugal existe muito menos espinha dorsal e os políticos fazem contorções enormes.

P. - Acha que isso é geral?
R. - Acho que o Lafontaine não é contorcionista. Entendeu que estava a mais. O fenómeno da globalização já não autoriza excessos de política ou de ideologia no comportamento das economias. Cá, de facto, nós ainda temos excesso de palavras, de interferência entre política e economia. Nem sequer existe o rigor das pessoas manterem o comportamento que tinham.

P. - Faz essa apreciação de toda a classe política?
R. - Não é toda. Outro dia perguntaram-me quem é que eu admirava na política. Eu gostaria de ter sido político, só que fiz uma opção diferente, com o que fiz na vida tinha até se calhar a obrigação de ter tido uma intervenção política maior. Mas tenho de andar uns bons anos para trás para encontrar pessoas que admirei, consistentes, com ideologias diferentes mas capazes de convergir. Nos políticos de hoje tenho muita dificuldade de encontrar alguém que admire e preocupa-me sobretudo a inacção. Na história do professor Marcelo fiquei espantadíssimo com muitas pessoas que me conheciam bem, que conheciam os factos - e que eram inequivocamente apenas factos políticos, para diversão dos políticos - e, apesar disso, mantiveram-se calados. E o silêncio, por vezes, é mais comprometedor do que palavras.

P. - Quais são as suas expectativas em relação a Durão Barroso?
R. - Conheço-o há muitos anos, tenho uma excelente impressão dele. Mas tenho de ser mais cuidadoso, tenho de esperar pela transformação de ideias em factos.

P. - Quem é que admira na política?
R. - Sá Carneiro, que foi um indivíduo que manteve sempre ideias coerentes e numa altura bem difícil, com a flexibilidade necessária e sem perder a espinha. Mário Soares também o foi, apesar de ter mais golpe de rins do que o Sá Carneiro. E o Adriano Moreira. Hoje em dia... Já fez alguma vez um estudo sobre quem está na Assembleia da República? Já verificou que grande parte são funcionários de partidos? Que entraram pelas "jotas" e por aí andam?

P. - Como é que resolvia a questão? Como é que acha que os deputados deviam ser escolhidos?
R. - Escolhia pessoas mais competentes, pagando-lhes muito mais e dignificando muito mais a profissão de político. Eu defendo que este país resolvia os seus problemas com cem deputados, dez ministros e um primeiro-ministro. Pagando-lhes e bem e tendo pessoas competentes. Hoje há pessoas no Parlamento que estão completamente caladas uma legislatura inteira.

P. - O trabalho parlamentar não é só falar. Está a fazer uma crítica simplista. Há deputados que trabalham e alguns trabalham mesmo muito. E foram eleitos.
R. - Eu sei que há bons profissionais. Mas havia muito mais do que hoje. Há uns indivíduos que se especializaram em ser actores, uma espécie de porta-vozes que falam sobre qualquer coisa com documentos que outros lhes fizeram.

P. - O nível dos nossos ministros é tão bom como o dos outros países. Não parece que tenhamos uma classe política tão má como a descreve. Está a falar com um desprezo enorme.
R. - Não é desprezo. É a verdade. Em Maastricht, o único primeiro-ministro a sério, que tinha a lição bem estudada - e eu até nem gostava muito dele -, era o John Major. Mas é evidente que essa gente tem uma cultura diferente daqui, embora também exista o populismo. O método eleitoral também conta, o que introduz um critério de escolha e de qualidade diferente. Em Portugal houve excelentes políticos até 1992.

P. - Inclui, portanto, Cavaco Silva.
R. - Incluo, até 1992.

P. - Já fez elogios ao primeiro-ministro actual.
R. - Sim. É uma pessoa extremamente capaz. O que lhe disse a ele é que leva o diálogo até um ponto que acho altamente inconveniente. O diálogo e os consensos é o quanto baste para decidir e decidir depressa.

P. - O país não é uma empresa.
R. - Não sendo uma empresa, precisa de decisões.

P. - Tomadas de outra maneira.
R. - Tem de haver um limite. Não pode é chegar ao fim de 30 dias e depois esquecer-se que passaram os 30 dias, e passado um ano ainda não conseguiu decidir.

P. - Isso é o problema das democracias, é preciso gerir o voto popular, que é uma coisa que não há nas empresas, os líderes das empresas não são sufragados.
R. - São, e de que maneira! Em todas as empresas há sufrágios mais assíduos e mais violentos que na política, feitos pelos accionistas.

P. - Com base em indicadores mais simples...
R. - Os políticos também devem ser sufragados com base nos resultados. As outras componentes é que muitas vezes são perigosas... é o grau de carisma, é o populismo. E eu não sei se são indicadores muito importantes para fazerem funcionar a democracia. Interessa é a qualidade de vida das pessoas. Se lhe faltar a electricidade em casa, se não tiver saneamento, se tiver criminalidade na sua rua, se esperar sessenta dias em vez de seis dias no hospital... tudo isso é susceptível de ser medido e com bastante rigor.

P. - Independentemente do contexto em que Marcelo fez as acusações de favoritismo do Governo à Sonae, não acha que cabe à Assembleia da República velar para que haja uma relação transparente e equitativa entre o Governo e o poder económico?
R. - Se alguém defende isso sou eu. O processo é que foi muito mau. O princípio é esse e eu não tenho nenhum problema. Acho que o poder político é o poder supremo, não tenho dúvidas nenhumas sobre isso. Agora, às vezes é mal utilizado por agentes que não têm competência para o exercer. Eu protesto muitas vezes, mas para que estando calado não seja prejudicado por estar calado. Nós nunca fizemos nenhum "lobby" no sentido de obter qualquer favor e eu desafiei todos os governantes e políticos a encontrarem um só caso de favorecimento à Sonae.

P. - Apontaram irregularidades na Optimus...
R. - Tomam uma decisão com base num erro. Eu mandei estudar esse assunto, porque do nosso ponto de vista pode haver responsabilidade civil ou dos deputados ou, se invocarem imunidade, do próprio Estado, porque  tomaram decisão com base em erros que eles conheciam. A realidade - e eles sabiam - é que a Sonae liderou o processo e retirou direitos de voto à France-Telecom, que generosamente cedeu parte deles. A outra mentira é a de que a posição societária foi alterada, quando a Optimus ganhou exactamente com aquela composição societária. Eu disse claramente, desde o início, que à Sonae não lhe passou pela cabeça um único segundo a hipótese de não liderar aquele processo. Portanto, a EDP está lá por convite nosso e beneficia enormemente de ter uma liderança muito forte. As relações com a EDP são boas, porque eles têm sido diligentes e têm elementos activos no conselho de administração.

P. - A questão é que Marcelo foi legitimado por um partido que tem trinta e tal por cento dos votos.
R. - Não é legitimado para dizer asneiras.

P. - Mas tem a legitimidade dos votos.
R. - E eu tenho a legitimidade de indivíduo, de cidadão, que tem direito a dizer o que quer.

P. - "Erradicar" não é, propriamente, um direito.
R. - É evidente que era por meios democráticos. Eu nunca matei uma mosca na vida.

P. - O problema é que o senhor não é um cidadão comum, é o homem mais rico de Portugal, o que o obriga a medir as palavras, a ter outros tipo de responsabilidades.
R. - Numa entrevista em directo na rádio ou na televisão nem sempre as palavras saem como nós queremos. O pior foi o que ele disse depois, que me chamou mafioso ou coisa do género.

P. - Há a ideia de que alguns grupos económicos deram-se melhor com o PSD e agora há outros que se dão melhor com o PS...
R. - Eu tenho já duas acções contra este Governo e vou para a terceira, se calhar. E tenho acções que vêm do anterior Governo e continuam neste. Pessoalmente, fui uma pessoa sempre muito mais próxima do PSD do que do PS. Só fui a comícios do PSD e depois da AD - da outra AD, porque esta não foi nada. De vez em quando estes estúpidos empresários, que não sabem nada de política, também têm uns palpites que batem certo...

P. - Mas as relações com este Governo correram especialmente bem...
R. - Eu pus uma acção violenta contra o Estado, já com este Governo, por causa da Portucel. E o Governo mentiu no Luxemburgo, no tribunal, por causa do problema dos emolumentos notariais. Nós defendemos que esses emolumentos são verdadeiros impostos e a Sonae quer uma reparação de uns milhões de contos. O nosso advogado mandou-me uma nota a dizer que vai acusar o Governo português de ter mentido. Este Governo.

P. - Toda esta dificuldade de relacionamento não está ligada à questão do financiamento dos partidos?
R. - Eu sempre defendi a existência de uma lei dos financiamentos clara. E sempre tive regras claras sobre o assunto. Nenhuma empresa da Sonae está autorizada a financiar partidos. E porque acho que é, de facto, um contributo para a democracia, reservo para todos os actos eleitorais cinco mil contos, que distribuo em 40, 40, 10, 10 [por cento], que era um bocado a chave dos votos. As pessoas estão habituadas a donativos muito mais elevados porque pressupõem contrapartidas. Eu não pressuponho qualquer contrapartida.

P. - E como é que se resolve o problema do financiamento?
R. - Dotando os partidos de um orçamento, com critérios que já estão estudados. E o Estado paga.

P. - Permitindo ou não aos empresários que contribuam?
R. - O problema dos empresários contribuírem não seria mau caso se instituísse uma verba adequada ao nível de vida em Portugal. Mas isso não resolve o problema dos partidos. O problema é que os partidos não se habituam a viver com os orçamentos que têm. Não podem gastar mais do que têm, só porque querem mandar vir o Júlio Iglésias. Os partidos têm que ter contas e regras transparentes e, mais, têm que ser obrigados a respeitá-las. Sem truques.

P. - Admite vir a ter uma intervenção política?
R. - Tendo feito o que fiz e tendo a idade que tenho, tendo os conhecimentos que tenho e as opiniões que tenho, entendo que era uma obrigação do cidadão Belmiro de Azevedo ter uma intervenção mais directa na política. Mas acho que tenho pouco jeito. Eu digo aquelas coisas que não se devem dizer e os políticos não dizem. Eu não teria feito aquelas declarações que fez o Durão Barroso, eu teria dito "vou fazer com outra equipa".

P. - Mas continua-se a falar nisso, principalmente gente ligada ao Norte fala de si como um bom candidato a Presidente da República.
R. - Não, acho que não. De vez em quando falam mas eu digo que não. Mas vou-lhes dar mais razões, algumas de natureza muito prática. É preciso ter jeito, ser mais flexível, a velocidade de decisão - mesmo admitindo que gerir um país não é gerir uma empresa - é cansativa. O tempo que demora a tomar decisões no Governo, as interposições de recursos possíveis... é frustrante. O processo de decisão é extremamente lento.

P. - São os custos da democracia...
R. - Não há custos para a democracia em decidir bem e depressa. Mas, completando, o processo de decisão não é compatível com a minha maneira de ser. Também - e é um defeito meu, seguramente - não seria capaz de fazer uma campanha eleitoral à moda portuguesa.

P. - Não era capaz de beijar crianças na ruas?
R. - Beijar crianças sim, mas a maneira como elas são beijadas...

P. - Está sempre a apresentar uma visão muito crítica da política. A política não é uma actividade nobre?
R. - Eu admiro e respeito as pessoas que fazem isso bem. Mas não me estou a ver como político. Por outro lado, estou a acabar aquilo que praticamente não terá sido feito em país algum, pelo menos com esta dimensão. Em duas gerações, em 35 anos, a Sonae passou de uma empresa de vão de escada à maior empresa portuguesa e à maior do mundo do sector do aglomerado. Isso dá-me gozo. Porque é que eu hei-de deixar de ter gozo em fazer coisas destas e passar a ter "desgozo" a desempenhar outra coisa? Depois eu tenho a minha vida. Gasto duas horas por dia em exercício físico, passo os fins-de-semana com a minha mulher no campo e tudo isso teria uma perturbação enorme.

União Europeia

P. - Acabámos de negociar mais um pacote de transferências financeiras para os próximos sete anos, o último. Depois passaremos a outro estatuto no quadro da União Europeia. Como é que vê Portugal neste momento?
R. - Ainda há muita gente que diz que Portugal deveria ter sido mais drástico, que devia ter existido mais espartanismo, mais coragem para eliminar alguns métodos de fazer coisas, algumas fábricas perfeitamente desadaptadas. Houve sectores que sempre acreditaram que nada aconteceria de muito importante e que sobreviveriam. Houve sectores que demoraram muito tempo a perceber que as coisas tinham mudado, como o têxtil e o calçado. Neste tempo todo não fomos capazes de lançar uma marca importante... E não é com aquelas "fogachadas" de feiras que a gente lá vai. Mas Portugal tem condições excepcionais. Primeiro, há muitos sectores que estão por explorar. Segundo, porque temos capacidade de globalizar muito daquilo que fazemos. E depois há a saúde...

P. - Já se estranhava a Sonae não tentar nada nessa área, considerada um dos negócios do futuro...
R. - Não tem lido os seus colegas? Dizem assim: "eu vou ali, como um hamburguer, é do Belmiro, vou a uma Pizza Hut, é o Belmiro, vou ao supermercado, é o Belmiro, compro uma viagem, é o Belmiro..." O que tem acontecido, é que nós crescemos por ondas, vamos amadurecendo. Temos três sectores completamente maduros, que crescem por si. Mas temos de estar sempre a fazer expansões, ou alargando o âmbito de intervenção, ou fazendo formatos novos ou alargando a geografia, e crescer com negócios emergentes e com novas oportunidades. Os telefones são para nós uma área nova, que decorre da importância que sempre demos aos problemas de tecnologia de informação e telecomunicações, que não só são importantes para fazermos bem os negócios como são um negócio por si próprias. E estamos a ver que são um filão inexplorado. Tínhamos um programa de investimento que quadruplicámos - de 30 ou 40 milhões de contos para 120 ou 130 milhões. Tínhamos que cobrir o país em três anos e vamos fazê-lo em menos de dezoito meses. Não tínhamos sequer sonhado entrar na rede fixa, e vamos entrar na rede fixa. Não tínhamos dado importância - como ninguém tinha dado importância - à Internet, e vamos dar muita importância à Internet. Porque é que isto se faz? Porque a Sonae é uma escola de negócios prática, é o conhecimento que se gera e a cultura das pessoas e o aperfeiçoamento e as carreiras e a apetência pelo risco, etc., etc., que cria na Sonae um "apetite" permanente que, às vezes, até já eu próprio não consigo controlar essa dinâmica. Isto é a Sonae.

P. - Quais são as capacidades do país? Um empresário da sua dimensão tem que ter uma opinião.
R. - O Porter chamou à atenção de uma coisa que parecia evidente. Dizia que as indústrias tradicionais não são necessariamente más. Mas é evidente que a indústria tradicional deve ter atenção que os sapatos, hoje, não são os sapatos de há dez ou quinze anos atrás - nem a maneira de fazer sapatos, nem a maneira de vender sapatos, nem onde vender os sapatos. Nós precisamos em Portugal de alguém que seja capaz de pegar em três ou quatro sectores e fazer o mesmo. Portugal é pequeno, não precisa de muitos sectores.

IMPRENSA

P. - Há um sector onde já fez várias tentativas para criar alguma força e tem sistematicamente perdido, a comunicação social.
R. - Há uma palavra que uso muito - "resilient" - , que na engenharia significa a capacidade de resistir sem partir. Na Sonae as decisões têm de ser fundamentalmente baseadas na razoabilidade e na racionalidade. Mas eu não quero ser um empresário que não usa a emoção e que não deixo para mim mesmo a capacidade de fazer coisas nas quais acredito, ou gosto, ou entendo que prestam um serviço à colectividade. Quando avancei com o Hotel Sheraton, no Porto, agora Porto Palácio, fi-lo por que achei que se devia fazer e não fui ver a taxa de rentabilidade. O PÚBLICO tinha como objectivo a ideia de que era preciso haver um jornal diário com uma qualidade completamente diferente da existente na altura. Entretanto, os outros jornais aproximaram-se da qualidade do PÚBLICO e, desse ponto de vista, acho que toda a gente concorda que o PÚBLICO foi um sucesso. E até do ponto de vista material andou melhor nos primeiros anos do que outros jornais que se fundaram com objectivos semelhantes. Depois houve ali um período um bocado complicado - doenças de crescimento ou seja lá o que for. Continuo a ter uma relação de carinho com o PÚBLICO, mas é óbvio que acho que perdemos desnecessariamente tempo de mais. Mas o PÚBLICO continua a ser, de longe - e é difícil ser eu a dizer isso, mas é isso que eu penso -, o melhor jornal. Eu digo sempre que o PÚBLICO tem de passar de jornal a empresa jornalística, é um passo importante.

Para fazer qualquer coisa num sector é preciso ter conhecimento e ter recursos. Um jornal faz-se fundamentalmente com receitas, que são os leitores e os investidores, e os jornalistas têm de fazer um bom produto, se não há uma coisa nem outra. E eu digo, e não é demagogia nenhuma, que o accionista sobra. Sobra porque se o produto for bom tem audiência, tem leitor e também tem investidor.

P. - Falhou o projecto multimédia, a televisão...
Na primeira tentativa de uma televisão, nós tínhamos uma leitura estratégica muito diferente do dr. Balsemão. Nem tínhamos o grau de emoção do dr. Balsemão, que tinha de fazer uma televisão desse por onde desse. Eu respeito essa posição, mas nós entendíamos que não se podia fazer uma televisão sem conhecer o estatuto da RTP e sem se saber quanto é que se pagava pelo transporte do sinal. E eu disse "ouve lá, vocês são malucos! Assim não dá." E disse ao dr. Balsemão que era melhor deixar o concurso vazio até que o Estado definisse o estatuto da televisão. O dr. Balsemão optou. E neste momento tem uma estação que tem sucesso financeiro mas que, do meu ponto de vista, não tem sucesso editorial. Eu não vejo, não gosto daquele produto.

P. - Apesar dos seis milhões de contos de lucros...
R. - Eu nunca fui dependente de dinheiro, muito menos agora. Mas se queremos falar de algarismos, o dr. Balsemão levou seis anos a ganhar seis milhões e a Sonae demorou três ou quatro meses a ganhar dois milhões e meio [a diferença entre o preço de compra e de venda da TVI]... E desde início estava claro que nós não podíamos fazer um "assalto" à TVI, visto que se os accionistas antigos pusessem lá o dinheiro nós saíamos. O que é estranho é que eles não tinham cinco coroas e de repente apareceu o milagre de não só pagarem aquilo que nós tínhamos pago como ainda pagaram muito mais. É um bom território para os jornalistas...

P. - E desistiu de um grupo de comunicação?
R. - Vamos lá ver, com a grande equipa que se está a formar em volta das telecomunicações, com telemóveis, rede fixa e Internet, a Sonae - a Sonae não é o Belmiro de Azevedo, que vai desaparecer de circulação um dia deste - ainda não disse que não faria outras tentativas. Até porque os conteúdos vão ser o problema determinante. É a parte mais intelectual dos multimédia. Um jornal, como origem de conteúdos, pode ser extremamente importante. E há muitas maneiras de fazer televisão. Brevemente.

P. - Há muita gente que diz que o senhor só tem o PÚBLICO por teimosia.
R. - Não é por teimosia, pode ser é por persistência. Sou uma pessoa extremamente persistente e paciente. Acho que as coisas podiam ter corrido muito melhor. Eu nunca tive o PÚBLICO para ser uma pena no chapéu, embora já tenha ouvido falar que era por prestígio... Sabem melhor que ninguém que eu nunca usei, nem ousei usar, o PÚBLICO para nada.

P. - Mesmo não usando, pode ser uma arma com prestígio.
R. - Há pessoas que pensam que utilizo o jornal, e só o facto de pensarem que eu utilizo já é muito poder. Enfim... não posso fazer nada. Mas não é por isso nem é uma teimosia. O nosso grande envolvimento nas telecomunicações e a importância de já ter conteúdos, obriga-nos a esperar mais tempo para saber se faz algum sentido voltar a fazer outras tentativas na área da comunicação social. E independentemente disso, devo dizer que acho que um bom jornal se aguenta por si, mesmo não estando integrado num grupo multimédia.

P. - O que tem a dizer sobre os rumores, cada vez mais insistentes, de que se prepara para vender o PÚBLICO a Pinto Balsemão?
R. - Sei que o dr. Balsemão falou com uma pessoa da Sonae há três ou quatro anos. Comigo nunca falou directamente sobre isso, nem há cinco anos, nem há quatro, nem recentemente.

P. - E com advogados do seu grupo?
R. - Eu costumo dizer que os advogados são para me dar conselhos, não são para fazer negócios. Não tenho nenhuma indicação concreta, nem directa nem indirecta, de que o dr. Balsemão queira comprar. Agora nós não temos nenhuma intenção de vender o PÚBLICO. Para sermos objectivos, eu tenho é a obrigação de, caso alguém apresente uma proposta difícil de recusar, de justificar a decisão perante os accionistas. Isso nunca aconteceu. E se acontecesse, ainda teria que ver uma condição que é muito importante para mim: eu já disse que faço muita questão em saber qual seria a pessoa que queria comprar o PÚBLICO. Não vendo a qualquer um e há pessoas que sabem, que eu já mandei dizer, que a eles não vendia.

A Sonae e a sucessão

P. - Apesar de não vender a qualquer um, o PÚBLICO, na reorganização das empresas, fica na futura Sonae Participações Financeiras. Todas as empresas colocadas nessa "holding" são empresas dispensáveis?
R. - Na Sonae Participações Financeiras há empresas de vários tipos, ou são "joint-ventures" ou são empresas à espera de outra dimensão. Por exemplo, a Barbosa & Almeida é uma empresa que tem de entrar num processo de globalização, tem de ter outra dimensão. O PÚBLICO está em "stand-by". Pode até regressar onde esteve se se verificar que os conteúdos podem ser importantes numa lógica de multimédia. Não há nenhuma pressa em afastá-lo, só que ele, de facto, não encaixa em nenhuma área. Tivemos de purificar a Sonae Telecom.

P. - Toda a reestruturação do grupo teve essa filosofia de purificação?
R. - Exactamente. Três "holdings" maduras [Indústria, Distribuição e Imobiliária], uma emergente a ficar madura [Telecom], que está a crescer muito depressa, e a Sonae Turismo, que vai depender muito do projecto Torralta. Nas outras áreas vai ter de haver uma motivação qualquer. Para que fique bem claro, poderemos chegar à conclusão que algumas daquelas empresas jamais terão fio estratégico. Há um pouco de tudo. São empresas que tanto podem estar lá seis meses, como seis anos como sessenta anos.

P. - Quais foram as razões estratégicas desta reestruturação?
R. - Não foi baralhar e dar de novo. No mercado de capitais a Sonae valorizou-se para além da soma das partes. O mercado dá muita importância a lucros futuros e começou a ver que na Sonae Investimentos havia pouca capacidade de gerar lucros futuros pela via da expansão. Ainda por cima a Sonae, por causa da aposta no Brasil, envolvia um risco que muitos investidores não gostam. E a Sonae caiu 38 a 40 por cento. Começou também aquela coisa de "o Belmiro agora mete os negócios bons na Inparsa", que era uma das críticas que faziam. Ora se eu foco a Sonae, os negócios novos têm de ir para a Inparsa. E a Inparsa valorizou-se ao ritmo de 130 por cento ao ano. O grupo, de facto, não pode separar as duas coisas. Tem de ter negócios maduros, negócios emergentes e oportunidades. E este desenho até me dá mais descanso...

P. - E protege-o de críticas...
R. - Nunca mais me chateiam a dizer que o grande negócio foi colocado aqui ou ali. Eu sou é um entusiasta permanente pela inovação e pela mudança e tenho tendência a envolver-me mais nos novos negócios, que precisam de captar novos quadros, que precisam de novas ideias. Por tendência e também porque não sou estúpido, porque nos negócios maduros já existe um número de pessoas que já sabe mais do que eu. Eu tenho é muita capacidade para os desafiar. Mas tenho 61 anos, e tenho consciência  - porque estudei os fenómenos de degradação em física atómica - de que todos nós temos uma vida biológica bem determinada... Portanto, todos nós devemos planear um pouco a nossa vida. E eu acho que tenho algum direito a uma vida mais calma. Introduzi agora alguma disciplina em casa... não trabalho aos fins-de- semana, embora leve sempre para casa uma data de coisas para ler e para fazer... mas são outro tipo de leituras e cada vez mais afastadas dos negócios.

P. - Tudo isso que está a dizer não é estranho ao novo modelo organizativo e de gestão que a Sonae apresentou, e também ao problema da sua sucessão...
R. - Eu acho que foi tudo muito bem explicado na apresentação que fizemos, e que o mercado percebeu bem.

P. - Basta olhar para o novo organograma e já se percebe alguma coisa, mas a ideia que dá é que existe uma mudança no grupo que não foi passada de forma clara e directa...
R. - Eu não sou daquelas pessoas que pensam que se podem resolver situações complexas com decisões simples. Não acredito. O grupo Sonae é muito complexo! Não há outro em Portugal, e no estrangeiro há muito poucos, envolvidos em tantos assuntos e tão diferentes...

P.- O novo organigrama da Sonae dá a ideia que há mais autonomia de gestão nas várias "holdings".
R. - Dá a ideia, não, há mesmo! Estamos numa fase de transição porque eu ainda lá apareço, mas a ideia, que já está mais ou menos definida, pelo menos nas "holdings" que estão mais maduras, é que eu desapareço mesmo.

P. - Daí a grande autonomia nas áreas de gestão. Mas a Sonae continua a ser uma empresa de uma família. Como é que vê este facto, em termos de futuro?
R. - Há uma confusão tremenda sobre isso. Se há problema que eu não tenho é o de ter família. Até porque sou acusado de ser anti-familiar. E a confusão que há é sobre as posições nepóticas de colocar na gestão filhos incompetentes. Eu tive muita sorte com os meus filhos, e há quem diga que também fiz por isso. São os três extraordinariamente bem educados, são queridos de toda a gente e toda a gente me diz que são tremendamente competentes e respeitados pela concorrência. Porque razão é que eu haveria de usar indevidamente o poder de pai para os afastar sendo eles competentes?

P. - Diz que não confunde família com capacidade de gestão mas que também não afasta familiares com capacidade de gestão apenas porque são familiares. Ora, hoje em dia as pessoas sabem quem é que manda na Sonae e nas suas 200 empresas. E questionam-se sobre quem vai passar a mandar quando se afastar. É uma dúvida lógica.
R. - Eu discordo, acho que não é nada lógica. Olhe para as principais empresas do grupo. No próximo ano, serão as mesmas pessoas que vão continuar a gerir. Eu vou lá uma vez por mês... e podia não ir. Vamos ser claros e transparentes. À minha relação com os conselhos de administração é indiferente estar lá formalmente ou não. É uma relação de confiança nessas pessoas, de as reapontar, de as reeleger, etc. Todos os analistas estrangeiros consideram que a Sonae é, de facto, gerida profissionalmente nas suas áreas principais e que os meus três filhos que lá estão, estão por muito mérito e são respeitados profissionalmente por toda a gente.

P. - As pessoas sabem apenas que é o eng. Belmiro de Azevedo quem manda na Sonae. E não sabem quem vai mandar depois.
R. - Quando fui operado - uma operação complicada - conversei com algumas pessoas sobre essa matéria, as pessoas mais importantes da estrutura Sonae, que não eram da minha família. Não disseram "morra descansado"... mas disseram que não havia qualquer problema. As pessoas entendem que se eu indicasse um sucessor agora, da família ou não, criava muito mais problemas do que não o fazendo. Às vezes indica-se um chamado indigitado sucessor e depois isso não se verifica e é uma "barraca" desgraçada. E em segundo lugar, e passe o elogio, as pessoas consideram que eu ainda acrescento muito valor com a minha capacidade de resolver negócios com a força da minha personalidade e com os meus conhecimentos. Eu quero que este sentimento desapareça, e estou a obrigar as pessoas - tenho criado mecanismos internos - a ocuparem o meu espaço nos contactos.

P. - Consta que na altura da operação indigitou um sucessor, nome que ficou no segredo de apenas duas pessoas...
R. - Não. Não indigitei um sucessor. Eu tenho um Conselho Geral que conhece muito bem as pessoas todas da Sonae e os meus filhos. Não tenho nenhuma dúvida que eles faziam uma escolha certa. Falavam provavelmente com a minha mulher e faziam uma escolha certa. O que aconteceu na altura é que indiquei uma pessoa que, durante poucos dias, devia tomar conta do grupo. Ficou tudo claro? Não tenho nenhum problema com o assunto, durmo descansado...

P. - Neste momento, com a liberalização absoluta dos mercados financeiros, existe um poder económico global a que só correspondem poderes políticos nacionais, divididos, criando um desequilíbrio que pode ter consequências graves. Como é que vê esta questão?
R. - Quem tenta fazer julgamentos definitivos corre sempre o risco de dizer umas coisas que se adaptam apenas ao momento que se vive. Foi com a liberalização dos movimentos de capitais nos países civilizados, sobretudo os de curto prazo, que os políticos perderam poder. Aquilo a que se chama "os mercados" tem de facto um impacto terrível. E os políticos têm dois medos terríveis: a comunicação social e os mercados financeiros.

P. - Ter medo não significa que seja o correcto...
R. - Está bem, mas têm muito medo. Há muitas decisões que os bancos centrais não tomam por causa dos mercados, e há muitos ministros em Portugal - e em todo o mundo é assim! - que mandam umas "bocas" para verem como é que a comunicação social reage e, só depois, em função do que disser a comunicação social, é que tomam decisões.

P. - Em Portugal, na América e em toda a parte...
R. - Em toda a parte... Esse medo reduziu o poder dos políticos.

P. - E isso é bom ou é mau?
R. - É preciso ver quem são os actores e os princípios que defendem uns e outros. É evidente que os políticos, se fossem todos bons, por definição, deviam ter princípios e mais respeito pelos pobres e pela distribuição da renda do que os empresários, que são vistos, normalmente, como preocupando-se apenas com o "bottom line". Mas a realidade, eu acho que é outra (não sei se estou a puxar a brasa à minha sardinha). Hoje, a qualidade e as responsabilidades sociais e ambientais de determinados empresários, se não são iguais, provavelmente são superiores às dos políticos.

P. - Fazem mais e são melhores que os políticos?
R. - Isso é uma realidade. Isto é difícil de dizer e já sei que depois vou apanhar pancada por causa disto. O que quero dizer é que a qualidade média dos empresários e a quantidade de empresários de alto gabarito que existe no mundo, dizem-nos que nós não estamos entregues a um bando de bandidos. Por outro lado, nós sabemos que na maioria dos países, para já não falar nos países muito atrasados, a classe política perdeu ideologia e não ganhou saber nem experiência.

P. - Mas apesar de todas as responsabilidades dos empresários, a sua lógica é a da criação de riqueza. A lógica de uma sociedade é outra, e tem políticos que existem para distribuir a riqueza, para resolverem injustiças, para equilibrarem poderes...
R. - Não estou de acordo. Primeiro, porque muitos desses problemas são resolvidos pelos empresários e nem sequer chegam aos políticos... e quanto mais assim for mais os políticos se podem dedicar àquilo que de modo algum os empresários podem resolver. Porque há várias áreas que eu acho que o Estado deve continuar a ocupar.

P. - Como a segurança social?
R. - Não precisa de ser implementador, mas tem de haver autoridade para regulamentar e legitimidade para o fazer. A questão é que há dois fenómenos, a criação de riqueza e a distribuição de riqueza. E há custos de exploração e custos de distribuição. E a eficiência é muito importante. Se tiver uma montanha de dinheiro, uma montanha de bem público, se quiser, e se a distribui mal, perde-se. E as máquinas de distribuição do Estado são particularmente ineficientes e com tendência, até, para serem corruptas. Não... é verdade... da pequena corrupção à grande corrupção, têm tendência para serem corruptas.

P. - Mas o poder político é outra coisa...
R. - O que eu defendo é que o poder político deve ser usado, no máximo, nas questões essenciais do Estado. E é por isso que o ministro da Economia, sem definir políticas industriais, que já passaram de moda, deve definir regras fundamentais de concorrência, deve garantir que os pequenos não são ameaçados por um "glutão" qualquer, etc, etc. Agora, quando vejo o ministro da Economia a gerir empresas...

P. - Regressando às crises financeiras, a fuga de capitais dos mercados emergentes...
R. - Faz parte das regras do jogo...

P. - Das actuais. Acha admissível que o nível de vida de um país possa, de repente, cair 50 por cento? Acha que o mundo pode funcionar assim, ou que é, de facto, necessário criar algum tipo de regras?
R. - Algumas regras tem de haver. O que não se pode alterar é o princípio de deixar os mercados funcionarem. Porque aí entramos de novo nas reservas, e é muito pior. Nos fluxos monetários, e nos de trânsito é a mesma coisa, pode-se aplicar a teoria da "viscosidade", do domínio da engenharia hidráulica. Há fluxos menos viscosos e outros mais viscosos, que andam mais devagar. Antes desta crise, o Chile criou um sistema em que os capitais eram só parcialmente especulativos, tinham de pedir licença para saírem. É uma regra, mas é uma regra de mercado. O Chile conseguia atrair menos capitais, mas eram capitais mais seguros porque mais estáveis. Colocar novas barreiras? Isso é muito complicado e acho que já ninguém defende esse tipo de soluções.

A realidade americana

P. - Hoje em dia verifica-se que os Estados Unidos da América são o país que mais vantagens tira - e sabe tirar - da globalização, ao contrário da Europa que sente claras dificuldades de competição. Isso significa que a Europa terá de se "americanizar"? Que o modelo americano é que é bom?
R. - A Europa só há pouco tempo é que vive num regime sem "compartimentos" - só desde 1992, fundamentalmente. Os Estados Unidos não. Não só tem excelentes universidades como é um mercado enorme. Além disso, há ainda muita gente que "não se pensa europeu na Europa", só pensa na sua terra ou no seu país. Isto são coisas que demoram muito tempo. A Nokia é um bom exemplo. Nasceu para ser global, não apenas para ser europeia. Mas enquanto na Europa há muito poucas empresas assim, nos Estados Unidos existem imensas.

P - E a simples existência de um mercado europeu garante essas condições?
R. - Teoricamente, um mercado com mais habitantes garante mais poder económico, mais riqueza e, sobretudo, mais cultura e mais capacidade... curiosamente, a Time publicou a lista com as cem personalidades mais importantes e são quase todas europeias. Desde cientistas a pessoas da cultura.

P. - Isso significa que a Europa deve manter as suas características em termos de organização social?
R. - É evidente que ninguém que tenha a cabeça em cima dos ombros discute a necessidade de cuidados de saúde mínimos e alguma segurança social mesmo para pessoas que, entre aspas, não "mereciam" - não estou a falar das pessoas que não têm trabalho, mas sim das que não querem mesmo trabalhar. Agora, é necessário encontrar soluções alternativas, porque as soluções europeias ao nível da segurança social vão entrar em bancarrota. Os Estados Unidos resolveram o problema através dos fundos de pensões, o que trouxe um benefício muito grande a toda a economia, porque esses dinheiros foram para o mercado de capitais e geraram uma riqueza enorme.

P. - Mas são culturas diferentes...
R. - São diferentes, mas os nórdicos, que são um exemplo nesta matéria, começam a questionar-se. Porque há quem mude de residência porque paga de mais, há quem comece a trabalhar menos, há investidores que deixam de investir, etc, etc. E o poder político vai ter de entender isso. Em Portugal, por exemplo. Seja através de coligações seja através de alguma concertação, porque as grandes ideologias vão-se esbatendo. Não só porque houve de facto uma aproximação ideológica como, sobretudo, porque deixa de haver campo de manobra.

P. - A questão é essa. As pessoas não terem alternativa...
R. - A questão é o Estado ter de fazer opções. O problema de fundo, mais uma vez, tem a ver com o facto de um Estado qualquer gastar 50 por cento do seu orçamento com uma determinada finalidade e um outro precisar de gastar apenas 30 por cento.

P. - Essa é a diferença entre o modelo americano e o modelo europeu, mas não responde...
R. - Mas agora temos de ver méritos de um e méritos de outro. Ninguém está à espera que a Europa, que os Estados europeus, vão reduzir as suas despesas de um momento para o outro. Mas isso vai acontecer gradualmente. E tem a ver com a redução do tamanho do Estado.

P. - Como é que explica o facto de a economia dos Estados Unidos continuar a crescer a ritmos que ninguém previa?
R. - Os Estados Unidos, por mérito próprio e com alguma sorte, "cavalgaram" o sucesso que tiveram as novas tecnologias. Essa "onda" criada pelas novas tecnologias arrastou a economia de uma maneira impressionante, e acho que vai durar muito tempo. Existem também todos os fenómenos psicológicos, de natureza comportamental, que resultam do facto de os Estados Unidos acharem que estão "numa boa". E depois, porque são descomplexados. Não se preocupam nada com o problema dos "vendedores de hamburgueres", do trabalho precário. Nós preocupamo-nos muito, eles não. As pessoas não percebem que isso é bom para os estudantes, que passado um ou dois anos esses indivíduos já não são vendedores de hamburgueres, que entretanto aprenderam umas coisas da vida real que são interessantes... (na Sonae, os jovens licenciados vão aprender a carregar sacos e a limpar armazéns, porque senão saem logo doutores, e é também por isso que eu não entendo alguns deputados, saem de uma secretária e vão logo para outra....).

P. - É então uma vantagem do modelo de sociedade...
R. - Têm um comportamento de sucesso porque têm razões para ter sucesso. Têm o mundo a seus pés. O mundo sempre foi assim. A educação, a cultura, o poder económico, o poder militar, o poder político vão-se construindo a par e passo. Os Estados Unidos foram construindo isso tudo e têm agora um "jack-pot".

P. - Admira a componente económica. Também a cultural?
R. - Não digo que admiro. Tenho é de constatar a outra cultura. Para mim, não dá! Tive em zonas onde seria intolerável viver, quer do ponto de vista climático quer porque as pessoas são ignorantes chapadas. Nunca vi ninguém tão ignorante como o homem de rua dos Estados Unidos.

Futuro

P. - Quais são os seus projectos?
R. - Vou-me entreter, até mais ou menos daqui a um ano, a acabar esta reestruturação. Já disse e repito que acredito que a biologia tem as suas regras e eu tenho que organizar a minha vida para fazer coisas razoavelmente diferentes das que fiz até hoje...

P. - Que coisas?
R. - Olhe há vários projectos, alguns que ainda têm componentes empresariais. Estou a tentar dar uma outra dimensão a uma escola de negócios no Porto, que seja europeia ou até mesmo global. São projectos concretos, relativamente pequenos, que não tirem tempo. Projectos com África. Vou querer ler mais, muito mais, eu gosto muito de ler e tenho tido pouco tempo para ler, para reflectir. Vou fazer coisas mais simples. Ajudar mais os agricultores a organizarem-se, para vingarem. Projectos menores... Vamos lá ver, esta fase, que de algum modo um dia qualquer terei de encerrar, já me deu todo o gozo possível ao nível de fazer coisas muito grandes.

P. - Essa escola de negócios ...
R. - Já existe. É o Instituto Superior de Estudos Empresariais, que se está a tentar relançar. Há neste momento um excedente de candidatos a cursos de gestão, os MBA, enorme. A Espanha vai muito a nossa frente.

P. - Será uma coisa internacional?
R. - Eu acho que tem de ser internacional, se não aquilo é uma secção. Um dos problemas dos nossos MBA é que, não se separando das universidades clássicas, nunca mais saem daquele espartilho. Dar aulas numa escola de negócios é muito diferente de dar aulas numa universidade. Para além do indivíduo ter de ser competente, tem de ser um grande actor, um comunicador - e em línguas estrangeiras. E nós temos muito pouco dessa gente cá. Habituaram-se desde muito cedo a dar poucas aulas. É uma coisa impressionante.

P. - Isso é a esclerose de algumas das nossas universidades. Não dão aulas, não produzem livros...
R. - É encarado como uma conquista. Depois ficam rapidamente obsoletos, é uma vergonha. Ainda estive, numa fase inicial, numa comissão de avaliação de universidades. Quando comecei a ver o que se fazia, pensei "mas que universidades se vão avaliar? Com que professores?" Fui lá três ou quatro vezes, quis falar com os professores, nunca lá estavam! Então vou avaliar uma universidade, tenho de avaliar os professores e os professores dão aulas é na Católica e na Nova! Enquanto os professores não se dedicarem às suas universidades temos o que eu chamo os caixeiros-viajantes. São os engenheiros que andam de universidade em universidade, alguns de Jaguar, e tal. Avaliar universidades sem professores, bem definidos e permanentes, é uma fraude!

Jugoslávia

P. - Como vê o conflito do Kosovo e o avalia em termos de futuro da Europa?
R. - Eu tenho que falar como alguém que tem de ver e apreciar pelas palavras e pelos olhos dos outros, sobretudo pela gente da comunicação social. Eu, como gosto muito de história, leio muito sobre história, interesso-me muito sobre a evolução da Europa, quem esteve onde. Nos Balcãs, por razões várias, criou-se uma situação de "apartheid", que foi tolerada e que agora se pretende de alguma maneira institucionalizar. São regiões diferentes com populações muito diferentes, com hábitos diferentes, inclusive ao nível da procriação. Isso leva a que o direito à terra não é das populações absentistas - isso tem a ver com muita coisa que se disse aqui a seguir ao 25 de Abril: quem é que tem direito à terra? No caso de um território, é quem vive lá ou quem diz que historicamente ganhou uma guerra determinada? Eu tenho tendência a dizer que quem cultiva a terra não tem os direitos todos, mas tem direitos do diabo! Portanto, é muito difícil não dar direitos aquelas pessoas. Por outro lado, com toda a franqueza, acho que o Milosevic é pior que o Hitler. O que é estranho para mim, nesta questão, é que a maioria dos intelectuais portugueses, pelo que eu leio, estão muito preocupados com esta agressividade do polícia americano. Eu desejo-a. Acho que é um problema que, indo a outro tema, a Europa das regiões vai ajudar a resolver. É por isso que o excesso de Estado às vezes é mau, e ali temos excesso de Estado.

P. - Acha que o uso da força tem justificação?
R. - Há situações em que o uso da força não é desejável, mas é tolerável. Ali valia a pena. A civilização mundial andou sempre por ali. Estamos a falar de Egipto, Grécia, Roma e depois Europa. É berço do mundo. E é pena que num berço onde a democracia finalmente se instalou existam ainda ditadores, terroristas e autoritários. Com um homem daqueles não há contemplações, deve ser mesmo até às últimas consequências.

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