Louis CK desculpa-se, mas os escândalos sexuais já afectaram o produto cultural

O filme de Louis CK, cancelado nos EUA, vai estrear-se mais cedo em Portugal. Denúncias levaram a novas filmagens para substituir Kevin Spacey e ao fim de várias séries e filmes. Efeito Weinstein afecta o rosto de parte do futuro e mostra dificuldades em olhar para o passado.

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Louis CK ERIC THAYER/Reuters

O caso do comediante Louis CK, o mais recente nome acusado de má conduta sexual, é também um exemplo de como a indústria está a reagir de forma imediata, moral e economicamente, à polémica. Cancelando a estreia do seu filme nos EUA, retirando espectáculos passados dos serviços de vídeo on demand ou, no caso português, antecipando mesmo a estreia do seu novo filme, I Love You, Daddy. O “efeito Weinstein” está a afectar não só como se vê o que foi feito até agora por nomes acusados de assédio, mas também o rosto de parte do futuro.

Louis CK, figura tão admirada quanto adorada — e que, como o New York Times frisa, tinha um tipo de comédia muitas vezes focada na hipocrisia e onde tocara temas como a compulsão da masturbação —, admitiu esta sexta-feira as acusações de que foi alvo, na quinta-feira, num trabalho do mesmo jornal. Após anos de rumores, pela primeira vez comediantes como Dana Min Goodman e Julia Wolov deram a cara para dizer que CK (abreviatura do seu apelido, Székely) se masturbou na sua presença, ou noutros casos ao telefone ou em reuniões num gabinete, dizem outras mulheres. Que defendem nunca ter consentido ser colocadas naquela posição em que, como diz a única que reservou o seu anonimato, “ele abusou do seu poder”. "Estas histórias são verdade", disse Louis CK em comunicado, detalhando: "O poder que eu tinha sobre estas mulheres era que elas me admiravam". 

Desde 5 de Outubro e de uma primeira investigação do New York Times, uma vaga de denúncias sobre diferentes graus de assédio ou violência sexual perpetradas por homens em posições de poder começou em Hollywood e espalhou-se por outros sectores. Com várias investigações policiais em curso no caso de Harvey Weinstein, por exemplo, e alguns processos legais mais avançados em casos como o do publisher da revista ArtForum Knight Landesman, as denúncias destes alegados crimes estão sobretudo a ser julgadas no tribunal da opinião pública. "Estas histórias mudam a nossa percepção" da arte criada por Kevin Spacey, Bill Cosby ou, agora, Louis CK, analisou o crítico Matt Zoller Seitz no Vulture na sexta-feira. "Isto é não só inevitável quanto é uma parte necessária de processar a arte", sobretudo quando ela se aproximou de temas que agora são bastante reais.

No caso daqueles que escrevem, produzem ou actuam em séries, filmes ou espectáculos, estão a ser tomadas decisões de cariz tanto moral, quanto económico em torno das suas criações. 

Horas antes de a história sobre CK ser publicada, a estreia de passadeira vermelha do seu novo filme era cancelada, bem como uma ida, na noite desta sexta-feira, ao talk show de Stephen Colbert. A distribuidora The Orchard enviou um comunicado em que diz que “não vai avançar” com o lançamento comercial de I Love You, Daddy, cita a imprensa internacional. O filme estreou-se no Festival de Toronto, não sem alguma polémica por retratar um quase septuagenário que tenta seduzir uma adolescente, história evocativa do perfil de Woody Allen. E irá estrear-se em Portugal primeiro no Lisbon e Sintra Film Festival, dia 23, e segundo disse ao PÚBLICO a produtora do festival, a estreia comercial foi mesmo antecipada. A produtora, que diz não ter informação oficial do cancelamento do lançamento no mercado internacional, disse também ao PÚBLICO que esta passa de 21 de Dezembro para 30 de Novembro. 

A comediante Rhea Butcher foi uma de muitas a reagir no Twitter aos actos de Louis CK. “Louie é a série”, escreveu sobre a elogiada série do canal FX, “Louis CK é o monstro”, disse, separando as águas e fazendo eco da velha questão sobre se se pode distinguir obra e autor. A HBO cancelou a participação de Louis CK num espectáculo de beneficência futuro, retirou também todos os espectáculos e títulos passados do comediante dos seus serviços de vídeo on demand. Já o Netflix, que estreou em Abril um especial de stand-up de Louis CK, mantinha o mesmo, até à publicação desta notícia, no seu catálogo em Portugal, mas cancelou a encomenda de um segundo espectáculo.

O canal FX descreveu-se inicialmente como “muito perturbado” pelas alegações sobre a sua estrela e, em comunicado, dizia que não recebera quaisquer queixas sobre má-conduta do comediante nos últimos oito anos. Depois da admissão de culpa de CK, "terminaram a sua associação" com o comediante, disseram em novo comunicado, indicando que ele deixará de ser produtor executivo nem receberá quaisquer dividendos das séries que tinham em produção conjunta - Baskets, Better Things, One Mississippi (que passa na Amazon) e The Cops. "Esta não é uma altura para ele fazer programas de televisão", lê-se ainda no comunicado, emitido horas depois do de CK.

No seu pedido de desculpas, CK estende-as aos seus colaboradores actuais e de outras séries. O caso "significa que a arte de Louis CK não foi significativa? Claro que não", escreveu Matt Zoller Seitz. "Foi enormemente importante, não só para espectadores mas também para as pessoas que fizeram a suas próprias séries", diz sobre a sua influência. Mas, remata, traiu a confiança das mulheres a quem se expôs, e como outros, "traiu a confiança do seu público".

O debate já fora suscitado desde o estalar da polémica, primeiro com Harvey Weinstein, cujo nome desapareceu dos créditos de algumas produções recentes e cuja produtora perdeu contratos com a Amazon Studios, por exemplo — pelo caminho ficou aquela que seria a primeira série de David O. Russell (Guia para um Final Feliz), um drama sobre a máfia com Robert DeNiro e Julianne Moore, cancelada pela Amazon. Mas subiu de tom quando a Cinemateca Francesa, por exemplo, viu a sua retrospectiva de Roman Polanski, condenado por violação de uma menor nos anos 1970, envolta num protesto do grupo Femen. Manteve o ciclo e Polanski esteve na homenagem, mas entretanto adiou “sine die” a retrospectiva dedicada a Jean-Claude Brisseau, condenado em 2005 e 2006 por assédio a duas actrizes e por agressão sexual a uma outra, respectivamente.

Já no que diz respeito ao cinema que ainda não vimos, e numa medida invulgar no seu timing e motivação, a um mês e meio da estreia de Todo o Dinheiro do Mundo Ridley Scott decidiu voltar a filmar todas as cenas em que Kevin Spacey participava e substituí-lo por Christopher Plummer. Chamará mesmo novamente os actores com quem contracenara Spacey, acusado de assédio por vários jovens actores, para, no fundo, apagar a sua presença no filme e, em parte, fazer uma nova obra ou o pedaço de uma nova obra.

Protagonista da série House of Cards, Spacey foi despedido da mesma e a produção da sua derradeira temporada está suspensa enquanto se desenham novos caminhos para a intriga da série do Netflix, cujo filme sobre Gore Vidal protagonizado pelo actor caído em desgraça foi também cancelado. A ligação do produtor Brett Ratner à Warner Brothers foi também cortada e o filme que a empresa Playboy previa desenvolver com ele sobre Hugh Hefner foi suspenso depois de ter sido acusado por várias mulheres de agressão sexual – acusações que nega.    

Preocupações éticas ou medo de protestos, má imprensa ou resultados de bilheteira estarão a condicionar a história do que será visto, ou não, nos cinemas, televisões ou salas de espectáculo nos próximos meses, e mesmo anos. Recorde-se o caso do filme The Birth of the Nation, de Nate Parker, considerado em 2016 um candidato saído do Festival de Sundance directamente para os Óscares, e comprado para distribuição com essas expectativas, que se afundou num mar de polémica e, depois, esquecimento após ser revelado que o autor tinha sido acusado de violação.

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