Aprovação do 155 pode não selar o futuro da Catalunha

PSOE propôs suspender intervenção de Madrid. Líder catalão decidiu convocar eleições e depois desistiu. Oposição insiste com Puigdemont para se apresentar no Senado.

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Puigdemont entrou e saiu em silêncio do parlamento Albert Gea/Reuters

Poucos terão sido os dias em que pareceu ter acontecido tanto para, na verdade, não acontecer nada. Ou então ninguém percebeu exactamente o que se passou e aconteceu, de facto, algo importante, cujas consequências só se conhecerão esta sexta-feira.

Factos: ainda não se declarou a independência da Catalunha e a aplicação duríssima do artigo 155 da Constituição proposta pelo Governo de Mariano Rajoy não se tornou até agora irreversível. Mais factos: às 9h (hora de Portugal continental) de sexta-feira começa o plenário do Senado de Madrid, às 12h recomeça a sessão plenária no parlamento catalão.

No primeiro, vai aprovar-se a proposta de intervenção do Governo de Madrid na Catalunha, na presença de Mariano Rajoy; no segundo poderão votar-se propostas de todos os partidos, antecipando-se que pelo menos uma das formações independentistas proponha a votação de uma declaração de independência.

Foi uma manhã caótica na Catalunha. Porta-vozes da Generalitat deixaram passar para os jornais que o presidente catalão, Carles Puigdemont, se preparava para convocar eleições autonómicas, desistindo assim do que descreve como “mandato” saído do referendo inconstitucional de 1 de Outubro, quando votaram 43% dos eleitores e 90% disseram “sim” à independência. Anunciou-se uma intervenção de Puigdemont para as 13h30, depois para as 14h30, em seguida cancelou-se a mesma para depois esta ter lugar às 17h.

“Não obtive garantias que permitam a celebração de eleições em plena normalidade”, acabou por dizer o presidente catalão. Na prática, o Governo de Rajoy não terá confirmado a suspensão da aplicação do artigo 155. Ao mesmo tempo, os socialistas tentavam em Madrid introduzir na proposta em discussão no Senado uma emenda segundo a qual, apesar de aprovada, esta seria suspensa se houvesse convocatória de eleições na Catalunha.

A câmara alta do Parlamento espanhol autoriza o Governo a aplicar este artigo, não o obriga a fazê-lo. Aliás, depois do Senado, a proposta final ainda tem de ser aprovada em Conselho de Ministros, previsto para sexta-feira à tarde ou sábado, antes de ser publicada no Boletim Oficial e entrar, por fim, em vigor.

“O meu dever era tentar tudo para evitar o impacto nas nossas instituições do 155”, disse Puigdemont, justificando assim adiamentos e reviravoltas. “Ninguém tem o direito de dizer que eu não estive disposto a sacrifícios para garantir o diálogo”, disse ainda o líder da Generalitat, antes de transferir para o parlamento a resposta ao 155.

Entretanto, antes das palavras do presidente catalão, manifestações que se tinham iniciado de manhã nas ruas de Barcelona contra a aplicação deste artigo transformaram-se em protestos contra o “traidor” Puigdemont. Algumas centenas de pessoas juntaram-se mesmo diante da sede do PDeCAT (Partido Democrata Europeu da Catalão, antiga Convergência), partido do líder da Generalitat. Os mesmos manifestantes voltaram a erguer cartazes contra o 155 e em defesa da “república catalã”.

Não se sabe exactamente o que fez Puigdemont mudar de ideias. Na reunião do seu governo, pela manhã, comunicou aos conselheiros a sua intenção de avançar para uma ida às urnas. Só isso justifica a saída “em pranto” (La Vanguardia) da porta-voz da ERC (Esquerda Republicana da Catalunha, no poder com o PDeCAT), Marta Rovira, os anúncios de demissão de autarcas e deputados do PDeCAT e a reunião da Comissão Executiva da ERC, onde se decidiu que se Puigdemont avançasse para a convocatória de autonómicas o partido abandonaria o governo.

“Traidor" e recuos

Foram os gritos de “traidor” e a iminente perda de apoios a provocar o recuo? Ou a verdade é que de Madrid terão chegado informações fiáveis da suspensão da ingerência nas instituições catalãs que depois não se confirmaram? Só uma ou outra alternativa ou, muito provavelmente, uma mistura de ambas, explica o que aconteceu. Caso contrário, Puigdemont limitou-se a iniciar o seu suicídio político.

Salvar a Catalunha da intervenção duríssima preparada pelo PP (que afasta todo o governo e esvazia de funções o parlamento) “é muito, muito, muito, muito improvável nas não é necessariamente impossível”, resumia a meio da tarde Xavier Vidal-Folch, jornalista e colunista do diário El País.

Apesar de aparentemente todos os dados o contrariarem, o analista Antoní Gutierrez-Rubi também apostava ainda “num acordo de última hora que não torne irreversível o desenlace mais dramático”. Mesmo os adiamentos da intervenção de Puigdemont, defende, explicam-se pela existência de “uma crescente aliança no sentido de um acordo”, com muita comunicação entre Barcelona e Madrid e muita gente disposta a mediar o maior conflito político da democracia espanhola.

Ir a Madrid?

Puigdemont manteve-se em silêncio durante todo o plenário do parlamento catalão, ouvindo ataques e propostas dos opositores.

Depois da líder da oposição, a porta-voz do Cidadãos, Inés Arrimadas, o ter acusado de “dividir em dois a sociedade catalã, conseguindo irritar e frustrar as duas metades”, o líder do PS Catalão, Miquel Iceta, fez-lhe um desafio em tom de apelo. “Hoje, o sr. não devia estar aqui. Hoje, gostaria de o ver no Senado […]. Ainda há tempo, ainda tem amanhã [sexta-feira de manhã]”, defendeu Iceta. “Pode esperá-lo uma recepção truculenta mas eu acompanho-o, sabendo que vou discordar de tudo ou pelo menos de parte do que disser. Evitar o 155 é possível. Pode contar connosco”.

Como se não quisesse ficar atrás, o líder do PP da Catalunha, Xavier García Albiol, disponibilizou-se a fazer o mesmo. “Mas fique sabendo que irei o caminho todo a pedir-lhe que ‘regresse à legalidade’”, descreveu, repetindo assim o mantra dos conservadores.

Já passava das 22h em Barcelona e demitiu-se Santi-Villa, conselheiro para as Empresas e o Conhecimento (que ameaçara fazê-lo num cenário de proclamação de independência) e a coligação no governo, Juntos pelo Sim, convidou mais de 700 autarcas a estar sexta de manhã no parlamento. São os autarcas que estiveram sempre ao lado da Generalitat, defendendo o referendo e a “república”, sob ameaça da Justiça.

Se os interpretarmos à letra, os sinais indicam que Puigdemont não vai mesmo ao Senado e que a independência será declarada. Mas perante uma situação tão fluida e com tanto em causa, os sinais podem não passar disto mesmo.

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