Assim vai a Itália: a situação é desesperada... mas não é grave

Nova lei eleitoral não garante maiorias. E faz de Berlusconi o árbitro das combinações.

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A Itália não muda, está sempre em efervescência política. Haverá eleições, provavelmente em Março. Por isso, o Parlamento está em vias de aprovar a enésima lei eleitoral da República. O projecto passou na Câmara dos Deputados, falta o Senado, que previsivelmente a confirmará. Mas, avisam os politólogos, não garantirá “a governabilidade”. Por muito que espante, Silvio Berlusconi volta a ser o árbitro: não vai regressar ao poder, mas nenhuma maioria poderá ser feita sem ele.

Façamos um breve resumo. Em Dezembro, o então primeiro-ministro Matteo Renzi perdeu o referendo da reforma política cujo ponto central era a mudança de estatuto do Senado, ou seja, a abolição do “bicameralismo perfeito”, que implica que o Governo tenha de obter a confiança das duas câmaras do Parlamento. Eleitas de modo diferente, têm muitas vezes maiorias distintas. É um factor de instabilidade governamental e de lentidão do processo legislativo, levando à necessidade de acordos bastardos.

Em Janeiro deste ano, o Tribunal Constitucional anulou a disposição-chave da lei eleitoral de 2016 (dita Italicum): o partido que vencesse com mais de 40% teria um “prémio de maioria” ou, então, ele seria disputado numa segunda volta entre as duas formações mais votadas. O TC recusou a segunda volta (ballottaggio). Se o vencedor alcançar os 40% tem o “prémio”, senão a distribuição dos mandatos será puramente proporcional.

Vantagem da direita

A Câmara dos Deputados aprovou agora um sistema misto: um terço dos lugares eleitos por sistema maioritário em círculos uninominais; dois terços por sistema proporcional. A barreira de entrada é fixada em 3%. A primeira consequência é que, com um eleitorado “tripolarizado”, nenhum partido ou coligação atingirá os 40%. Em segundo lugar, o sistema favorece quem conseguir coligações mais largas para eleger nos círculos uninomimais.

A força que mais contesta a nova lei eleitoral, produto de um acordo tácito entre Renzi e Berlusconi, é o Movimento 5 Estrelas (M5S, de Luigi Maio, já que Beppe Grillo passou para os bastidores). Os “cinco estrelas” consideram que é uma lei concebida para os prejudicar. Lançaram uma virulenta campanha a denegrir Renzi e Berlusconi (ver foto). “Não temos culpa de que o M5S se recuse a fazer alianças”, responde o Partido Democrático (PD, de Renzi). Além de recusar alianças, o movimento “anti-sistema” tem outros dois problemas: a sua irregular implantação territorial e a falta de nomes com credibilidade política são uma pesada desvantagem nos círculos uninominais.

O PD e o M5S continuam, consistentemente, a liderar as sondagens, oscilando entre os 25% e os 30%. A Força Itália (FI, de Berlusconi) permanece na casa dos 13%-15%, a par da xenófoba e le-penista Liga Norte (LN, de Matteo Salvini). Uma terceira força de direita nacionalista, os Irmãos de Itália, de Giorgia Meloni, estará na casa do 5%. Salvini tenta disputar a liderança da direita ao octogenário Berlusconi. Mas tem um ponto fraco: a credibilidade política. Só o Cavaliere poderá unir uma coligação da direita.

E o PD? Faltam-lhe aliados. A soma da “esquerda da esquerda” representará 6% dos eleitores. Seria o aliado natural. Mas o que move esta “esquerda da esquerda” é o desígnio de impedir, a qualquer preço, um regresso de Renzi ao governo. São “irmãos inimigos”. Resta a Renzi um acordo com a piccola Alternativa Popular, de Angelino Alfano, actual ministro do Interior e antigo ministro de Berlusconi. O centro clássico foi pulverizado.

A coligação da direita tem óbvias dificuldades programáticas: basta lembrar a posição antieuro da Liga, que Berlusconi não pode tolerar. Mas, dizem as “eminências pardas”, as coligações destinam-se a garantir mandatos no voto uninominal para depois serem dissolvidas. Alguns avisam que a Liga pode vir a ser um dos grandes beneficiários nos colégios uninominais do Norte.

O politólogo Roberto D’Alimonte, um dos inspiradores do Italicum de 2016, mostra perplexidade perante tudo isto, porque, com a nova lei, o PD e a FI juntos não terão uma maioria absoluta. Defende que só uma “grande coligação” (PD e FI) pode assegurar um governo estável. “Não porque o queiram Renzi e Berlusconi, mas por outra coisa: dou zero à possibilidade de um governo de centro-esquerda, tal como a um governo PD-M5S ou a um governo FI-M5S. Deixo 10% a um governo M5S-Liga e uns 20% a um governo de direita. Por isso, a grande coligação. (...) A síntese é: un gran casino [confusão ou trapalhada]. Não é muito científico, mas é assim mesmo.”

Responde Nicola Piepoli, politólogo e especialista em sondagens: “Se alguém quer realmente governar, arranjará sempre uma maneira, lembrem-se de Andreotti.”

M5S e PD

Derradeira observação: o cenário de uma “grande coligação” poderá favorecer o M5S na sua batalha contra o “sistema”. Entretanto, o movimento mudou de look e elegeu, pela primeira vez, um chefe e candidato a primeiro-ministro — Luigi di Maio, 31 anos, com gravata e um estilo muito cordato — um anti-Beppe Grillo. Por trás dele, permanece o líder real, Davide Casaleggio, filho do falecido Gianroberto Casaleggio, o inventor do movimento.

L’Ultimo Partito é o título de um livro dos politólogos Paulo Natale e Luciano Fasano, acabado de publicar. O “último partido” é o PD. A FI de Berlusconi foi concebida como um partido-empresa. O M5S pretende ser um “antipartido”.

O PD foi fundado em 2007, sob direcção de Walter Veltroni, com o desígnio de ser “um partido reformista de massas”. Reunia os herdeiros das duas grandes famílias políticas — comunistas e democratas-cristãos. Mas não cumpriu as expectativas.

Após uma recuperação com Renzi — e uma espectacular vitória nas eleições europeias de 2014 — dá sinais de perda de dinâmica — interna e eleitoral. Um dos sinais mais preocupantes é o acelerado envelhecimento da sua base e do seu eleitorado. Apesar da juventude do líder, tornou-se num “partido grisalho”. Perdeu “os jovens adultos”, a faixa dos 30 aos 40 anos, cada vez mais atraídos pelo M5S. É uma má notícia para a política italiana. Uma tendência que não é só italiana mas europeia.

Mas tanto a evolução do M5S, como a crise do PD exigem um textos próprios e não há espaço para os tratar aqui.

A política italiana é ao mesmo tempo inovação e regresso ao passado. Combina arte e cinismo. A dramatização é uma constante. Devemos relativizá-la. Parodiando, por exemplo, o título de um velho filme: “Situação desesperada... mas não grave.”

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