A vida e a morte na vida de Kiarostami

Vinte anos depois (estreou em 1997) é obra-prima que já era na época; o que o tempo lhe fez foi consolidá-lo, com uma “patine” de pequeno monumento.

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Um filme sobre a morte e sobre a dificuldade de morrer, sobre a vida e sobre a dificuldade de viver

Um ano e pouco depois da morte de Abbas Kiarostami, reencontro em sala (e em cópia anunciada como correspondente a um restauro) com uma das suas obras-primas, um dos seus filmes mais poderosos e interpelantes — em especial a sequência final, e depois a sequência “pós-final” com a canção de Louis Armstrong, num dos fechos de filme mais surpreendentes e discutidos de toda a história. Mas sobre isso não daremos mais pormenores, a pensar em quem quiser ir descobrir agora o filme pela primeira vez (e porque, que diabo, também Kiarostami tem direito a ser poupado a “spoilers”, isto não é só para os “blockbusters”).

O Sabor da Cereja é a história do senhor Badi, que se quer matar, tem tudo planeado para o efeito (incluindo uma cova já aberta), e precisa de um voluntário para o enterrar depois de consumado o acto. Anda por ruas e estradas, no seu jipe, a interrogar transeuntes e, até que se percebam as suas intenções, muitas coisas passam pela cabeça do espectador e daqueles que ele interpela (que se trate de um homossexual no engate, por exemplo, algo que seria extraordinário num filme iraniano e cuja mera possibilidade, que nem chega a ser “sugestão”, é das coisas mais subversivas em toda a obra de Kiarostami).

O Sr. Badi, interpretado por Houmayoun Ershadi (um não-actor, arquitecto na vida real e amigo de Kiarostami, que depois lhe tomou o gosto e entrou noutros filmes, inclusive produções americanas) lá consegue convencer alguns possíveis colaboradores a entrarem no jipe — são soldados com memórias da guerra, ou são representantes de várias etnias (azeris, curdos, afegãos) representadas na população iraniana, ou nela refugiadas por causa das múltiplas guerras na região. Discutem a vida, a morte e o suicídio, deixam ecos da história recente do país e da região, como se imprimissem um photomaton imaginário da vida no Irão em finais dos anos 1990. O jipe, onde a câmara de Kiarostami está quase sempre montada, funciona como o carril de um travelling quase permanente, tanto como o ronronar do seu motor alimenta o road movie (ou roar movie...) que é o road movie mais road movie de todos os tempos. Depois vem aquela assombrosa noite final. O Sabor da Cereja é um filme sobre a morte e sobre a dificuldade de morrer, sobre a vida e sobre a dificuldade de viver — mas também sobre o prazer, o sabor da cereja ou o sabor do cigarro. Vinte anos depois (estreou em 1997) é obra-prima que já era na época; o que o tempo lhe fez foi consolidá-lo, com uma “patine” de pequeno monumento.

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