“Ajudei a morrer a pessoa de quem mais gostava”

Professora responde em tribunal pelo homicídio do namorado no Natal passado, num caso de contornos misteriosos.

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MIGUEL FERASO CABRAL

Sentada perante a juíza, a professora de 36 anos repete, de voz embargada: “Cometi um crime: ajudei a pessoa de que mais gostava a morrer. E também tenho vontade de morrer.”

Tudo sucedeu no Natal passado. Enquanto os centros comerciais se enchiam de milhares de pessoas para as compras de última hora, a professora pegava no telemóvel para fazer uma estranha encomenda: 35 quilos de gelo seco, um produto usado no cinema para criar efeitos especiais e que, misturado com água, pode ter efeitos letais. “Eu tinha-lhe prometido que nos matávamos os dois”, conta. É acusada de homicídio.

O gelo seco, que não é mais do que dióxido de carbono solidificado e que depois de molhado liberta um fumo intoxicante, havia de ser a penúltima das muitas prendas dispendiosas que lhe ofereceu. “Tudo o que pagava fazia-o com gosto”, assevera. A última, escassas horas antes do fim, foi um jantar no hotel Ritz, em Lisboa. Era uma derradeira tentativa para o demover do suicídio, diz, tal como o tinham sido as viagens a Madrid, Veneza, Paris, Roma, Barcelona e outras cidades europeias. Imperturbável perante as lágrimas da professora, a juíza de instrução criminal prossegue o interrogatório. “Ele alguma vez lhe bateu?”

“Não. Só ficava alterado quando eu lhe falava em ir ao psiquiatra.” Do seu relato em tribunal estão ausentes certos detalhes que revelou durante uma avaliação psicológica forense. Como as cabeçadas, pontapés e humilhações que terá sofrido ao longo dos cinco anos de relacionamento — e que o Ministério Público toma como genuínos. “Era um bocadinho ciumento”, acabará por admitir. Por isso passou a dar explicações de Português e Inglês em casa, deixando a escola. 

Tinham-se conhecido em 2011 no Porto, num mestrado de realização para cinema e televisão. Já na altura ele não tinha emprego — aliás, praticamente nunca tinha trabalhado. Ele morava com os pais, de quem recebia uma semanada de 70 euros, e a irmã dele recorda-se de ser habitual deambular pela casa a falar sozinho, confirmando as suas perturbações psicológicas e a agressividade verbal. Terá sido para agradar aos pais dele que o casal, que nunca chegou a partilhar casa de forma permanente, inventou uma gravidez que nunca existiu. Também chegaram a estar de casamento marcado, mas ele desistiu.

Quando não estavam no Norte, a professora na sua casa de Gaia e ele em Famalicão com os pais ou então com ela, iam até Lisboa. Ela alugara um apartamento no Parque das Nações por 750 euros mensais, tendo pago o primeiro ano de rendas adiantado. Donde lhe vinha tanto dinheiro? Só das explicações? “Cheguei a vender muito ouro que me deixou a minha mãe. E a madeira de uns terrenos que tenho.”

“Queria que casássemos, que formássemos uma família e fôssemos felizes”, acrescenta mais tarde. Mas ele arrasta-a a ela também para um estado depressivo: “Dizia que ouvia vozes a dizer que tínhamos de morrer juntos. Vivíamos numa bolha, num casulo.” Quando não estavam juntos os telefonemas eram constantes, às vezes mais de 40 por dia.

O que se passou na fatídica noite só ela sabe. Se tiver ajudado o namorado a cometer suicídio arrisca-se a apenas três anos de cadeia, dos quais, de resto, já cumpriu dez meses, em prisão preventiva. Só que o Ministério Público entende existirem demasiadas pontas soltas e acusa-a de um delito cuja moldura penal oscila entre os 12 e os 25 anos de cadeia, homicídio qualificado. Como móbil do crime, apresenta o facto de a docente estar ciente de que não conseguiria manter a teia de mentiras em que se enredara. “Começando a ficar desesperada na sua ligação começou a planear forma de se livrar dele, libertando-se de todos os seus problemas”, deduz a procuradora encarregue da investigação.

O casal tinha ido uma vez mais até Lisboa durante a época festiva. Ela encomendou o gelo seco — ao que diz, por pressão do namorado. A juíza parece quase convencida da sua versão dos factos: “Sem si ele não se conseguia matar! Ele nem o gelo conseguia encomendar sozinho!”

Depois de jantarem no hotel de luxo — comeram veado naquela noite — regressaram ao apartamento, onde já tinham sido entregues as caixas de gelo. Acenderam com carvão uma braseira que tinham acabado de comprar, para remediar o facto de a casa não ter o aquecimento ligado. “Chorámos muito, abraçados”, continua. Num relato anterior tinha descrito como, por entre os carinhos, ele a agredira uma vez mais.

A professora conta que o ajudou a despejar água no gelo e que a seguir saiu para a rua, em desvario, deixando o companheiro, ainda consciente, no meio do fumo. Já a acusação diz que a suspeita aproveitou o facto de ter ele ter adormecido, depois de ter tomado soporíferos, para levar a cabo essa tarefa, que de resto não seria senão uma manobra de dissimulação para apagar vestígios. É que aparentemente não foi o dióxido de carbono que matou o homem, e sim o monóxido de carbono do fumo provocado por um incêndio que deflagrou em dois pontos diferentes da cama onde dormia, e que carbonizou o cadáver, concluíram os peritos da Judiciária.

Uma vizinha acordou com aquilo que lhe pareceu serem os gritos de um homem aflito. Já a professora ainda regressou ao apartamento por breves momentos, mas voltou a sair e nunca pediu ajuda, nem mesmo quando se cruzou com a vizinhança, acordada pelos alarmes de incêndio. Levava posta uma peruca, ao que explica porque a depressão lhe tinha feito cair o cabelo.

“O seu relato é incongruente”, acaba por lhe lançar a juíza, confrontando-a com o facto de a desorientação não a ter feito esquecer-se de levar consigo a carteira quando abandonou o apartamento. Apanhou nessa madrugada um táxi para Gaia e só regressou a Lisboa quando as autoridades lhe pediram explicações. À família do namorado disse que não sabia dele. Depois foi presa. “Sinto muitas vezes que devia ir ter com ele”, insistiu perante o tribunal de instrução criminal no início deste mês, antes de os guardas voltarem a conduzi-la à cadeia de Tires. “Durmo duas ou três horas e acordo a gritar por ele.” O julgamento vem aí.

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