Carles Puigdemont, o independentista sereno no meio do furacão

“Ele está extraordinariamente tranquilo, não vai recuar”, diz o jornalista Vicent Partal, que há uma semana entrevistou o líder catalão, um jornalista tornado político e presidente da Generalitat quase por acaso.

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Carls Puigdemont Albert Gea/Reuters

Se há um perfil típico do independentista catalão – não dos soberanistas que se descobriram nos últimos anos, mas daqueles que crescem a sonhar morrer numa nação catalã – o actual presidente da Catalunha dificilmente se poderia encaixar melhor na descrição.

Carles Puigdemont nasceu em 1962 na aldeia de Amer, perto de Girona, a cidade a nordeste de Barcelona de 97 mil habitantes conhecida pela arquitectura medieval e ruínas romanas. Meio em tom de anedota, diz-se pela Catalunha que em Girona só se ouvirá falar catalão; os factos provam que a piada está próxima da realidade.

Filho e neto de pasteleiros, nunca sonhou ser um dia líder da Generalitat, muito menos aquele de quem se espera ouvir uma declaração de independência da Catalunha. Escolhido para substituir Artur Mas em Janeiro do ano passado, precisamente pela defesa radical do direito à soberania da sua região, é ele que agora se diz pronto a enfrentar a prisão para permitir que os catalães possam votar sobre a independência no referendo que convocou para dia 1 de Outubro.

Apesar de ter estudado Filologia e de estar desde novo ligado à política partidária, ainda se descreve como jornalista. Aos 18 anos apoiou a Crida, um movimento de defesa da língua e cultura catalãs, pela mesma altura em que ajudou a fundar as Juventudes Nacionalistas em Girona, próximas da Convergência Democrática da Catalunha (a formação de Artur Mas, nacionalistas de direita), um dos partidos que agora forma a coligação independentista Juntos pelo Sim.

Foi nesse ano de 1980, contaria mais tarde, que teve uma espécie de revelação durante o comício de encerramento das primeiras eleições catalãs, o primeiro a que assistia. O orador era Jordi Pujol, que em breve se tornaria presidente da Generalitat.

A entrada de Puigdemont no jornalismo acontece quase a seguir, quando começa a escrever no jornal El Punt, diário com sede em Girona onde chegará a chefe de redacção. Actualmente, a única edição do El Punt é precisamente a da sua cidade – manteve-se por razões históricas, quando, em 2001, o título se fundiu com outro jornal, fazendo nascer o El Punt Avui, um dos jornais abertamente independentistas da região.

É ainda no El Punt que lança uma campanha para mudar o nome da cidade, de “Gerona”, em espanhol, para “Girona”, em catalão. Mas os seus maiores sucessos no jornalismo já aconteceram por encomenda do governo autonómico. Foi ele que criou, em 1999, a Agência Catalã de Informação, e, em 2004, a revista em inglês Catalonia Today (onde ainda trabalha a sua mulher, a jornalista romena Marcela Topor).

Autarca por acaso

A entrada mais a sério na política aconteceu quase por acaso, quando o escolhido para encabeçar a lista da Convergência e União (coligação nacionalista entretanto desfeita) ao município de Girona desistiu em cima da hora e Puigdemont aceitou substituí-lo. À primeira, perdeu para os socialistas, que governavam a cidade desde 1979; venceu à segunda, em 2011, quando já era deputado do parlamento catalão.

Puigi, diminutivo pelo qual é conhecido, passou de candidato autárquico por acaso a presidente de circunstância da Generalitat. Afinal, Artur Mas contava manter-se no cargo depois das eleições de 2015, às quais se apresentou já com a coligação Juntos pelo Sim. Mas os esquerdistas da CUP (Candidatura de Unidade Popular) desconfiavam da sua conversão tardia ao secessionismo e recusaram-lhe um voto de confiança – os seus deputados são essenciais para a actual maioria independentista do parlamento. Puigdemont estava há um ano à frente da Associação de Municípios pela Independência e pareceu à CUP uma opção mais confiável.

O jornalista feito político era um desconhecido em Espanha e mesmo na Catalunha muitos nunca tinham ouvido o seu nome até esse momento. “Puigdemont vai ter mais margem de manobra, não tem de demonstrar nada a ninguém, é independentista desde sempre, antes do seu próprio partido o ser”, dizia ao PÚBLICO o jornalista catalão Ferran Casas pouco depois.

O conciliador convicto

Prometeu desde logo que os catalães poderiam votar sobre o seu futuro político num referendo vinculativo – o fracasso de Artur Mas, com a consulta simbólica de 2014 –, mas também prometeu nunca se precipitar com “uma declaração unilateral de independência”. Pedia diálogo a Madrid e Casas descrevia-o como “um conciliador”, avisando que era também “um homem de convicções muito fortes”.

Por culpa de Madrid ou de Barcelona, consoante o ponto de vista, o diálogo não foi possível. E assim se chegou aqui, ao momento de ruptura total, com Puigdemont a convocar um referendo que o Tribunal Constitucional suspendeu e que o Governo de Mariano Rajoy garante que nunca se realizará. Com a polícia espanhol a deter membros do governo catalão e Madrid a enviar reforços policiais para a Catalunha. E, sim, com Puigdemont a prometer que afinal sempre vai declarar a independência unilateralmente se essa for a vontade da maioria dos catalães que quiserem ou puderem votar.

“Ele está extraordinariamente tranquilo, muito sereno e seguro do seu caminho. Não vai recuar”, diz ao telefone a partir de Barcelona Vicent Partal, director do jornal digital VilaWeb. “Madrid quer forçá-lo a perder a cabeça mas isso nunca acontecerá, ele tem a cabeça no sítio certo.”

Para melhor explicar a serenidade do líder catalão, Partal descreve um episódio recente: “Na sexta-feira passada [15 de Setembro], eu estava a entrevistá-lo na redacção quando entra na sala o seu chefe de imprensa – queria avisá-lo que a Guarda Civil estava a entrar na redacção do El Punt Avui. Nesse mesmo momento, ligam-me da recepção a dizer-me que a Guarda Civil está a entrar. O presidente olhou para mim e para o seu chefe de imprensa e disse: ‘Bem, continuemos com a entrevista’. E assim foi”.

Inversão de prioridades

Enquanto já vigiava gráficas, tentando apreender boletins de voto e material de campanha, a Guarda Civil também entrava em todos os jornais e rádios da Catalunha para os notificar da proibição de publicarem qualquer tipo de propaganda eleitoral e procurar anúncios pró-referendo.

Por maiores que sejam as suas convicções, é difícil imaginar Puigdemont confortável no seu papel actual. Caseiro, era conhecido por faltar a um ou outro compromisso político para não perder o aniversário de uma das duas filhas. Em vez de ocupar a Casa dels Canonges, residência oficial, preferiu sempre percorrer duas vezes ao dia os cem quilómetros que separam Barcelona da sua cama, em Girona. Logo ele, que teve um acidente grave de carro aos 21 anos – a cicatriz com que ficou explica o cabelo descaído para o rosto, tantas vezes alvo de gozo.

Nos últimos tempos, Puigdemont teve de alterar as suas prioridades e deixou de ter tempo para ajudar as filhas com os trabalhos de casa ou ir buscá-las à escola. Mas sempre viu o cargo que ocupa como tendo prazo de validade e nunca se disponibilizou para se manter no poder para lá da independência. Resta saber se imaginava o custo pessoal de cumprir a promessa de organizar um referendo. O mais certo é ainda nem o saber.

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