South Park atira-se aos supremacistas brancos - sem Trump, mas na América de Trump

No episódio dos seus 20 anos, a série que tinha prometido largar o novo Presidente não pôde ignorar o país em que vive. No passado, não poupou Maomé, Obama ou Tom Cruise em alguns dos seus episódios mais controversos. Contém spoilers.

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A temporada da maioridade de South Park, o episódio que marca os seus 20 anos, começou com supremacistas brancos. Tanto escapista quanto comentário social, a série de animação de Trey Parker e Matt Stone nunca fugiu à polémica: acelerou sempre contra ela. Desta vez, com as bandeiras da Confederação a adejar, dividiu opiniões. “Mordaz” para o IndieWire, “ainda não aprenderam a lição”, lamenta a Vanity Fair. Dos racistas aos profetas, passando pela Cientologia e pela Casa Branca, South Park tem todo um historial de episódios temáticos para lembrar.
 
“No princípio de tudo, éramos uma reacção, não contra o politicamente correcto que víamos nas nossas vidas”, dizia Stone à Vanity Fair há um ano, mas porque a “televisão era tão branda”. Contudo, a série da Comedy Central também se tornou a antítese cínica do politicamente correcto e a televisão foi mudando um pouco com ela, uma fronteira e uma flatulência de cada vez. No início do ano, os seus criadores disseram à ABC Austrália que iam afastar-se de Donald Trump depois de uma temporada cheia dele, na pele da personagem do professor Mr. Garrison. “Decidimos dar um passo atrás e deixá-los fazer a comédia deles e nós fazermos a nossa”, porque “agora é complicado, a sátira tornou-se realidade”. Em Maio, meses antes da estreia da 21.ª temporada, Parker dizia que a série gosta de alternar entre a comédia política e “as piadas de peidos”.

Mas ignorar Trump, ou a América de Trump, é tanto mais difícil quanto Parker e Stone insistem em continuar ligados à actualidade - é animação para adultos, estúpido. A violência em Charlottesville, que matou uma manifestante anti-extrema-direita e abalou os EUA com eco em vários pontos do mundo,  era um tema inevitável para South Park, a série que começou por passar em Portugal na SIC Radical e que depois transitou para a MTV.

White People Renovating Houses está disponível online. E lá vão eles, os manifestantes com bandeiras do Sul esclavagista, na Internet e no ecrã da Comedy Central na noite de quarta-feira nos EUA. Contra a perda de empregos, gritando, como em Charlottesville, “Não nos vão substituir”, interrompendo a produção da série de remodelação de casas por brancos do casal Marsh. Randy Marsh, pai de um dos miúdos centrais de South Park, lança-se então contra os manifestantes ("Temos direito de protestar!"; "Estupidez odiosa!"), para depois os tentar apaziguar mesmo perante frases como “os muçulmanos estão a tentar matar-nos, os negros estão a amotinar-se e os mexicanos a parir bebés”.

Para Ben Travers, crítico do IndieWire, isso representa uma crítica eficaz aos brancos, que só tentam a conciliação com outros brancos - um ataque aos “americanos que anseiam por se distanciar dos nacionalistas brancos quando eles estão às claras, mas que são moderados ao deixá-los partilhar palavras de ódio na privacidade das suas casas”. Já Laura Bradley considera que o episódio “não diz grande coisa” e, na Vanity Fair, lamenta que a série tenha “colapsado sob o peso” de querer ser inconsequente e comentar a actualidade. “A sua duradoura mentalidade de ‘tudo é mau’ ressoa de forma diferente numa altura em que muita gente se importa com muita coisa.” No meio está Jeremy Gerard, que descreve no Deadline a crítica aos supremacistas brancos como “subtil”. Que dificilmente é sinónimo de South Park.

Mesmo prometendo focar-se novamente nos seus miúdos reguilas e nas questões da cidadezinha gelada, talvez tenha sido inevitável para Parker e Stone responder a apelos como o de Sean O’Neal, no A.V. Club, para quem “seria mesmo bom se South Park também crescesse e assumisse a responsabilidade” pelo seu público e por quem criou com ela.

Alguns episódios, controversos ou políticos, de South Park

Há 20 anos, os bordões de South Park que ficavam na cabeça eram "Blame Canada" ou "Respect my authority". Brincava com a sacralização dos ídolos pop, tinha um cozinheiro que era um papa da soul (Isaac Hayes), matava crianças todos os dias e tornava fezes em símbolos do Natal. Tal como tinha acontecido com as t-shirts de Bart Simpson em 1990, as t-shirts de South Park eram banidas em algumas escolas nos EUA. Havia algo na voz rouca e descontrolada de Eric Cartman que crescia com os espectadores, semana a semana, e, até certo ponto, com a cultura.

Rapidamente os adversários passaram a ser não só o inocente Canadá, mas também todos os que tentassem limitar a sua liberdade – de expressão, de rir. Neste caminho, a série arriscou tudo num tempo de tensões pré-11 de Setembro quando insistiu, logo em Julho de 2001, em violar a mais elementar regra do Islão, que é a rejeição de qualquer representação visual do seu profeta, fazendo todo um episódio em torno de Maomé. A Comedy Central não transmitiu o episódio, mas ele ficou para a história.

Antes dos populistas como Donald Trump vieram os símbolos e várias religiões (Cristo a lutar com o Pai Natal, a Virgem Maria menstruada, os mormóns), as drogas, os vegetarianos, a sexualidade, Bono dos U2, armas, Kanye West, a pedofilia, o uso de palavras discriminatórias sobre negros ou homossexuais, e eventualmente, a Cientologia e um Tom Cruise fechado num armário (Março de 2006). Foi um dos seus grandes momentos de controvérsia.


South Park - Season 9 Episode 12_ Trapped in... por scientologyhumor

"South Park nunca quis muito saber do detalhe político e é mais comédia que esvazia os fanáticos e defende o ofensivo, como um Charlie Hebdo americano", sintetizava, no final de 2015, o crítico James Poniewozick no New York Times. Em 2006, voltavam à carga com dois episódios, Cartoon Wars I e II, sobre a representação de Maomé e a controvérsia em torno da representação pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten de Maomé em cartoons. O caso motivou protestos e manifestações violentas mundo fora e South Park trouxe as tensões para dentro da sua cidadezinha. A imagem de Maomé foi esbatida e censurada na transmissão (Abril de 2006).

Parker e Stone queixaram-se de que, durante a anterior presidência, ninguém se preocupava em como a série iria lidar com Barack Obama. Mas em 2008, por exemplo, na noite de Novembro em que a América elegeu o seu primeiro Presidente negro, aqueles que conseguiram manter-se em casa nas horas de festa em várias cidades faziam zapping. Entre as notícias, as emissões especiais de Daily Show e Colbert Report, mas também à espera do novo episódio de South Park. Também nessa altura estavam fartos de gozar às custas de George W. Bush, o Presidente que estava de saída. Em About Last Night…, Barack Obama ganhava (o final da última temporada teve de ser afinado devido à vitória de Trump) e imaginava motins entre os democratas e pânico dos republicanos.

Hoje, o sucesso continuado da série “é uma lembrança de que apesar de tanta imagem gerada por computador à qual nos habituámos, os espectadores ainda se identificam muito com uma série que podia ter sido produzida por alguém no seu quarto com uma câmara de vídeo barata e alguns recortes. É substância e não só estilo”, diz Phillip Vaughan, professor de efeitos visuais e animação na Universidade de Dundee, no Independent.

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