Viagens pagas: metade dos organismos não indentificam todos os riscos de corrupção

No ano das viagens polémicas, feitas por quadros do Estado a convite de três empresas, 47% dos organismos públicos admitiam dificuldades em executar os seus planos de prevenção da corrupção. Por "falta de meios".

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O presidente do Tribunal de Contas, Vítor Caldeira, é por inerência o presidente do Conselho de Prevenção da Corrupção Enric Vives-Rubio

Em 2014 e 2015, quando vários funcionários dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, da Autoridade Tributária, da Secretaria-Geral do MAI e do Instituto Informático da Segurança Social aceitaram viajar a convite de três empresas para a China e EUA, metade dos organismos do Estado dizia ao Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC) que o seu plano "não é exaustivo na identificação dos riscos” de corrupção. A conclusão está num relatório do próprio CPC, que nessa altura recomendou às entidades que gerem dinheiro público, incluindo às chefias, que adoptassem mais medidas para prevenir os riscos de corrupção e outras infracções semelhantes. Agora, algumas destas viagens feitas a convite da Huawey, NOS e Oracle estão a ser investigadas pelo Ministério Público.

Em 2015, o CPC – entidade independente que partilha a presidência com o Tribunal de Contas, onde funciona – divulgou os resultados de um questionário a mil entidades que gerem património e dinheiro públicos e que já tinham apresentado planos de prevenção de riscos de corrupção, tal como aconselhado por este organismo. O inquérito foi respondido entre Janeiro e Fevereiro de 2015 por 643 entidades (abrangendo mais de 350 mil funcionários) e, em análise, estava um período de cinco anos.

Se em 2015 eram 1000 as entidades públicas que o CPC sabia terem um plano, neste momento são 1160. O CPC desconhece, dentro deste aumento, que parte corresponde a planos entretanto feitos e que parte diz respeito à criação de novas entidades públicas – também não tem dados sobre o universo total de entidades públicas em Portugal.

Os holofotes viraram-se para estes planos depois de terem estalado mais polémicas sobre deslocações ao estrangeiro pagas por empresas privadas a funcionários de entidades públicas. No ano dessas viagens, embora desafiadas pelo CPC, as entidades públicas não eram obrigadas a responder ao questionário e, por isso, nem todas participaram. Foi o caso dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde e do Instituto Informático da Segurança Social, embora já tivessem, à data, os planos. E continuam a ter, acessíveis na Internet. Num caso é um código de conduta e outro de ética; no outro um Plano de Integridade e Transparência.

Já a Autoridade Tributária e Aduaneira e a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna colaboraram com o CPC e também tinham, na altura, os planos – embora o link para os mesmos não esteja disponível no relatório, como nos exemplos de outras instituições. Isto significa que o CPC desconhecia o link, o que por sua vez indica que o plano não estava publicado ou, então, não o estava de forma claramente visível. Hoje em dia, a Autoridade Tributária tem o plano online, embora uma parte seja reservada aos dirigentes e chefias. A Secretaria-Geral da Administração Interna também o disponibiliza online.

Nesse último relatório Prevenir a corrupção no Sector Público – Uma experiência de 5 anos, de 2015, já se aconselhava o seguinte: “Devem ser adoptadas medidas que permitam robustecer os planos existentes, designadamente através do seu alargamento aos riscos de gestão de toda a estrutura orgânica dos serviços, incluindo para as funções e cargos de direcção superior.”

Olhando para os dados em detalhe, percebe-se que, quando questionadas sobre se o plano de prevenção “identifica os riscos de corrupção e infracções conexas associados à actividade”, as entidades responderam quase todas que sim – 97,2%. Mas quando se afunila a pergunta percebe-se que, afinal, a maioria não identificava todos os riscos. Porquê?

Às empresas que afirmaram reconhecê-los, foi perguntado, então, se “o plano identifica apenas os riscos de alguns serviços da estrutura orgânica” ou “os riscos de todos os serviços da estrutura”, incluindo aqueles “associados às funções dos titulares dos órgãos de direcção e gestão”. Ora, é aqui que se percebe que 51,2% só identifica os riscos em alguns, e não em todos, os serviços – 46% afirmam identificar em todos os serviços os riscos, incluindo aqueles a que estão sujeitos directores e gestores. Quando a pergunta é se o plano caracteriza aqueles riscos em função da probabilidade e gravidade, 34,7% admitem que não.

“Dificuldades na execução do plano”

Noutro ponto também se chama a atenção para a necessidade de promover uma “cultura de prevenção de riscos de corrupção”, defendendo-se que “deve ir para lá de dirigentes e chefias, e ser ampliada a todos os trabalhadores das entidades, aos quais devem ser explicadas as medidas previstas para as suas unidades orgânicas.”

Em 2012, o CPC também fez uma recomendação sobre gestão de conflitos de interesses no sector público, insistindo na “promoção de uma cultura organizacional na qual impere forte intolerância relativamente às situações de conflitos de interesses”. Quanto a outros organismos, como por exemplo o Grupo de Estados Contra a Corrupção (Greco), entidade que luta contra o fenómeno no seio do Conselho da Europa, há dez anos que insiste, pelo menos, na necessidade de o crime de tráfico de influência para acto lícito passar a ser punido em Portugal.

No relatório de 2015, o CPC recomenda ainda que “o processo de execução e acompanhamento das medidas preventivas previstas nos planos deve tornar-se mais agilizado e eficaz”, nomeadamente “através da designação de responsáveis sectoriais e de um responsável geral pela execução do plano e pela elaboração dos correspondentes relatórios anuais”.

No documento, percebe-se também que “os planos foram tendencialmente elaborados apenas com o envolvimento dos dirigentes e chefias” ou com “grupos de trabalho”; que um terço das entidades os explicou só aos dirigentes e chefias; e que “apenas metade das entidades dispõe de serviços ou órgãos com funções de auditoria interna ou fiscalização”. Quando à divulgação do documento – que deve ser público (ainda que algumas partes, por questões de segurança, não o sejam) –, há 29,9% de entidades que não o têm no respectivo site.

O relatório do CPC também mostra que 49,8% das entidades admite estar a pôr em prática apenas “parcialmente” as medidas do plano e novamente cerca de metade (47,3%) não esconde “dificuldades na execução do plano”. A escassez de meios e a “ausência de funcionários com conhecimentos ou competências técnicas específicas na vertente da prevenção de riscos” são as principais razões.

Outros dados revelam que 50,5% das instituições não elabora periodicamente relatórios de execução dos planos (a escassez de recursos é novamente o motivo com mais peso); 54,3% não tinha revisto ou actualizado o plano; 52,7% admitia que a frequência para essa revisão e actualização não estava estipulada; e 57,4% reconhecia não estar definido o responsável por essa tarefa.

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