O homem que descongelou a história

Escolhemos uma capa que dispensava elementos noticiosos e se concentrava em exprimir esse sentimento de gratidão genuína a uma figura que marcara como nenhuma outra a fase final do século XX: Mikhail Gorbatchov.

Texto de arquivo, escrito originalmente para celebrar a edição 10 mil do PÚBLICO

Quando me propuseram escolher uma primeira página do PÚBLICO dos tempos em que fui director deste jornal, não hesitei. Seria aquela do “Obrigado, Gorbatchov”, frase inscrita sobre um grande plano do antigo dirigente soviético ocupando todo o espaço. Uma primeira página referida, aliás, na imprensa internacional, nomeadamente pelo britânico The Independent, que a classificou como a homenagem mais adequada ao homem que protagonizara um dos ciclos históricos mais decisivos do fim do século passado, após a queda do muro de Berlim.

Era dia de Natal, 25 de Dezembro de 1991, e o amplo – para mim tão saudoso – open space da redacção lisboeta do PÚBLICO, na quinta do Lambert, ao Lumiar, estava quase desértico, dir-se-ia fantasmagórico. Seríamos apenas uma dezena de jornalistas a trabalhar nesse feriado, mas recordo especialmente a presença de Jorge Almeida Fernandes, responsável pela edição da actualidade internacional, e Clara Viana, que o acompanhava na tarefa de tratar o tema do dia.

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O homem que descongelara a História anunciava nesse dia a sua demissão de Presidente de uma União Soviética em extinção. E sentimos o dever imperioso de assinalar um acontecimento sem precedentes na nossa vida de jornalistas. Escolhemos uma capa que dispensava elementos noticiosos – aliás já conhecidos no momento em que o jornal chegasse às bancas – e se concentrava em exprimir esse sentimento de gratidão genuína a uma figura que, apesar das mais variadas vicissitudes, incompreensões e hostilidades, marcara como nenhuma outra a fase final do século XX. O jornalismo também é isso.

Gorbatchov passou à História a partir desse dia, em que simbolicamente desaparecia também a URSS, e foi como se tivesse morrido politicamente desde então, segundo o que, aliás, ele próprio deixara antever. Mas resta a memória que guardamos do protagonista maior da transição entre o mundo assombrado pela guerra fria e o mundo em que hoje vivemos (bem mais inquietante do que aquele que herdámos dessa era, o que não deixa de ser de uma ironia trágica ou a prova de que a História não é uma linha recta). Apesar da intensa melancolia desse adeus do último – e, afinal, único – Presidente da URSS, mantínhamos a expectativa de que a sua herança reformadora e pacificadora não seria desperdiçada pelos seus sucessores. Infelizmente, não foi assim, como fomos vendo e concluindo com amargura nestes tempos sombrios de Putin e Trump.

Escrevi então que “nenhum homem neste século proporcionou, durante um período tão curto de tempo, mudanças tão extraordinárias e, sobretudo, nenhum como Gorbatchov viveu para conhecer o princípio e o fim delas. Ele está na origem da mais profunda alteração global do mundo em que vivemos e foi ele quem, enquanto governou, a tornou possível sem a catástrofe”. Isso não o impediu, porém, de sofrer as consequências da sua audácia e da sua impopularidade numa URSS em extinção e onde ele seria politicamente marginalizado para sempre, apesar (ou também por causa?) da excessiva condescendência táctica que manifestou em relação a Putin, pelo menos durante a primeira fase do poder do actual líder russo.

Volto a recordar, por isso, o que escrevi nesse editorial de 25 de Dezembro de 1991: “A própria ambiguidade da personagem de Gorbatchov, a sua missão impossível de reformador do comunismo, permitiram-lhe funcionar como amortecedor dos choques e das rupturas que se foram encadeando na agora defunta União Soviética. Mal-amado de todos – da “nomenklatura”, da elite pós-comunista, do homem comum para quem ele simbolizava, ao mesmo tempo, o poder e a sua impotência –, Gorbatchov conseguiu sobreviver com uma persistência estóica e um vigor incomparável a todos os golpes do destino. Só não sobreviveu ao último, quando a sua preocupação em manter a União a partir do centro se viu esvaziada por uma nova geografia do poder político e pela recusa da Ucrânia em integrar uma mítica entidade federadora em que Gorbatchov teria ainda um papel a desempenhar”. Por isso, ao “homem amargo que ontem abandonou o poder na solidão gelada do Kremlin, já não resta, aparentemente, outro papel senão o de espectador privilegiado de uma nova arquitectura geopolítica que ultrapassou os seus desígnios”.

Quem se lembra da Comunidade de Estados Independentes (CEI) que sucederia, depois da renúncia de Gorbatchov, à antiga URSS? Praticamente ninguém, até porque ela nunca chegou verdadeiramente a existir e o velho império soviético se desintegrou em áreas ora convergentes ora divergentes com Moscovo, como foi precisamente o caso da Ucrânia. Para os que não viveram ou não recordam os acontecimentos de há vinte e seis anos – neste momento em que o PÚBLICO comemora a sua edição 10.000 – esta evocação de um homem ainda vivo embora politicamente morto pode parecer bizarra. Só que a História também se faz desses has been com quem nos cruzámos numa inesperada esquina do mundo. E de todos esses has been Gorbatchov é, porventura, o sobrevivente mais marcante, pelo menos para aqueles que, como eu, com ele se encontraram num dia de Natal de há vinte e seis anos. Faz todo o sentido, por isso, repetir as últimas palavras que então escrevi: “É tempo para agradecer ao homem que, antes de partir, descongelou a História. Obrigado, Gorbatchov”.

Vicente Jorge Silva foi director do PÚBLICO desde a fundação até 25 de Setembro de 1996

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