Comissão da ONU ouviu "relatos credíveis" de tortura na Venezuela

"Choques eléctricos e espancamentos com capacetes e paus enquanto as pessoas estão algemadas", detidos "pendurados pelos pulsos por longos períodos" e "ameaças de violência sexual" são algumas das acusações.

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Membros da Guarda Nacional Bolivariana prendem manifestante da oposição Miguel Gutierrez/EPA

Há anos que várias comissões das Nações Unidas e organizações de defesa dos direitos humanos acusam o Governo venezuelano de reprimir activistas e manifestantes da oposição, mas desta vez a acusação é ainda mais grave e chega num momento em que a pressão internacional parece estar a crescer de dia para dia. Num relatório preliminar, a Comissão de Direitos Humanos da ONU diz que o país tem sido palco, nos últimos quatro meses, de um "generalizado e sistemático uso de força excessiva e de detenções arbitrárias" e denuncia casos de "tortura e maus-tratos sobre pessoas detidas por causa das manifestações".

As informações apresentadas esta quarta-feira pela comissão da ONU foram recolhidas à distância. No comunicado, o gabinete do alto-comissário para os Direitos Humanos diz que os funcionários da comissão não foram autorizados a entrar na Venezuela para fazerem o seu trabalho, pelo que todas as informações foram obtidas em entrevistas realizadas a partir do exterior (a comissão dá como exemplo o Panamá).

Mas a lista de entrevistas é extensa e a sua composição é variada, e a comissão da ONU diz que vai publicar um relatório completo até ao final do mês. Ao todo, foram feitas 135 entrevistas, entre 6 de Junho e 31 de Julho, a "vítimas e seus familiares, testemunhas, organizações da sociedade civil, jornalistas, advogados, médicos, equipas de emergência médica e o gabinete da Procuradoria-Geral, para além de informações por escrito do gabinete da Provedoria de Justiça".

O comunicado da ONU não avança pormenores sobre as informações enviadas pela Provedoria de Justiça, que à data das entrevistas era liderada por um fervoroso apoiante da "revolução bolivariana" de Hugo Chávez. Tarek William Saab, um descendente de libaneses de 54 anos, foi nomeado no passado fim-de-semana procurador-geral da Venezuela, depois de a nova Assembleia Constituinte ter afastado Luisa Ortega Díaz – uma apoiante de Hugo Chávez que se afastou radicalmente de Nicolás Maduro nos últimos meses.

Conhecido pelo seu gosto por tatuagens e por t-shirts apertadas que tornam mais visíveis os músculos trabalhados no ginásio, Tarek William Saab é um dos 13 altos funcionários ligados a Maduro que foram alvo de sanções aplicadas pelos Estados Unidos – disse que recebeu as sanções "como se fossem medalhas", e o Presidente venezuelano condecorou-o com a mais alta distinção do país.

A antecessora de Tarek William Saab na liderança da procuradoria-geral, Luisa Ortega Díaz, também foi ouvida pela Comissão de Direitos Humanos da ONU – segundo o comunicado, a 31 de Julho o gabinete da procuradora-geral estava a investigar 124 mortes "relacionadas com as manifestações". De acordo com as informações recolhidas pela equipa da ONU, dessas 124 mortes as forças de segurança são "alegadamente responsáveis" por pelo menos 46, e os grupos armados pró-Governo (conhecidos como colectivos) são "alegadamente responsáveis" por 27. Quanto às restantes 51, "não é claro quem foram os responsáveis", diz o relatório da ONU.

Entre as testemunhas e vítimas ouvidas pela comissão da ONU há relatos de que as forças de segurança usaram gás lacrimogéneo contra manifestantes sem aviso prévio e a curta distância, e foi disparado chumbo para caça e parafusos, entre outro tipo de munições. "As forças de segurança também terão usado força letal contra manifestantes", diz a ONU, que acusa a Guarda Nacional e a Polícia Nacional de "usarem a força de forma sistemática e desproporcionada para incutir medo, esmagar a dissidência e impedir pessoas de se reunirem, de se manifestarem e de chegarem a instituições públicas para entregarem petições".

A comissão da ONU fala ainda em "relatos credíveis" de "tratamento cruel, desumano e degradante de detidos pelas forças de segurança, podendo falar-se em tortura em muitos casos". Há também relatos de "choques eléctricos e espancamentos com capacetes e paus enquanto os detidos estão algemados", de detidos "pendurados pelos pulsos por longos períodos", de "asfixia por gás", de "ameaças de morte" e de "ameaças de violência sexual conta detidos ou seus familiares".

"Desde o início da onda de manifestações, em Abril, tem-se verificado um padrão claro de uso excessivo da força contra manifestantes. Vários milhares de pessoas foram detidas de forma arbitrária, muitas delas alegadamente sujeitas a maus-tratos e até tortura, e várias centenas foram levadas perante tribunais militares. E não há indicações de que este padrão possa vir a diminuir", disse o alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Ra'ad Al Hussein.

O jordano Zeid Ra'ad Al Hussein (que tem o título de príncipe no seu país mas não pode usá-lo na qualidade de alto-comissário da ONU) é conhecido pela sua já longa carreira diplomática, destacando-se na luta pela criação do Tribunal Penal Internacional e pela responsabilização de capacetes azuis da ONU acusados de crimes sexuais.

Na sua primeira declaração como alto-comissário, em Setembro de 2014, disse que "nunca há nenhuma justificação para aviltar, rebaixar e explorar outros seres humanos, seja com base na nacionalidade, raça, etnia, religião, género, orientação sexual, incapacidade, idade ou casta", e chamou ao autoproclamado Estado Islâmico a "casa de sangue". Tem sido muito crítico do Governo venezuelano, mas também das Administrações dos Estados Unidos – disse em várias ocasiões que os responsáveis pela tortura na CIA devem ser levados perante a Justiça, incluindo responsáveis políticos, militares de alta patente e agentes que fizeram os interrogatórios.

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