A Líbia é uma ameaça mas não tem solução sem construir um Estado acima das tribos

Destruir o Estado foi um meio do despotismo. Continua a ser a questão da Líbia.

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O Mediterrâneo é o mar que une a Europa à África, não é um “muro”. Sempre assim foi. Os europeus do Norte não têm a noção disso, têm-na os meridionais. Liquidada a tirania do coronel Khadafi, a Líbia entrou no caos e tornou-se numa ameaça à Europa. O vazio de poder lançou centenas de milícias tribais numa espécie de “guerra de todos contra todos” e fez multiplicar os tráficos. A dupla ameaça são as migrações de proporções “bíblicas” e o nascimento de um santuário para o terrorismo, como o do Estado Islâmico (EI).

Lamenta agora Yves Le Drian, ministro francês dos Negócios Estrangeiros: “A Líbia de Khadafi tinha muitos defeitos, mas exercia um controlo das fronteiras.” Foi a França quem impôs a guerra, a intervenção militar de 2011. “Um sucesso catastrófico”, nas palavras de um responsável da NATO.

Foi necessário que as migrações provocassem um choque de consciência perante os milhares de náufragos e se tornassem num factor de desestabilização política para que a Europa, com a Itália e a França à cabeça, assumisse a questão líbia como uma prioridade.

Há uma intensa actividade diplomática. No fim de Julho, o Presidente Emmanuel Macron reuniu nos arredores de Paris os dois principais chefes líbios: Fayez al-Serraj, primeiro-ministro do “Governo de Acordo Nacional” (GAN), de Trípoli, reconhecido pela ONU, e o general Khalifa Haftar, que domina a Cirenaica (Leste) e a principal bacia do petróleo líbio. A seguir, Sarraj foi a Roma. Discutiu-se um cessar-fogo, a estabilização do país e a possibilidade de fazer novas eleições como primeiro passo para a construção de um Estado. Macron anunciou a intenção de estabelecer na Líbia “hotspots”— centros de triagem dos refugiados candidatos a asilo. A Itália discutiu com Serraj a possibilidade de enviar navios para a sua costa líbia a fim de combater o tráfico de migrantes.

Serraj, Haftar e os “amigos”

A questão líbia está num daqueles pontos clássicos em que todas as análises incitam ao pessimismo, mas em que os actores internacionais têm a consciência de que é preciso forçar ou inventar uma solução. A diplomacia não chega e a intervenção militar é desaconselhável. A “outra solução”, também com risco de tragédia, seria tripartição do país: Cirenaica, Tripolitânia e Fezzan, reunidas no século XX pelo colonialismo italiano.

Nada é simples. A própria ideia de novas eleições pode traduzir-se não num apaziguamento mas na emergência de mais um centro de poder (um “terceiro parlamento”) e na generalização da guerra civil. Também o envio de forças de marinha europeias não seria indolor: o tráfico é a principal receita das milícias na costa líbia.

Nos últimos dois anos, a situação mudou. Continua a haver forças com milícias poderosas, como a cidade costeira de Misurata ou o Fizam (que mantém protegido ou refém Saif al-Islam, o filho de Kadhafi). O facto mais relevante foi a conquista de Bengasi, capital da Cirenaica, por Haftar, ao fim de três anos de combates.

Haftar, de 73 anos, participou na revolução de 1969, dirigida pelo jovem Kadhafi e que depôs o rei Idris. Foi o comandante duma desastrosa invasão do Chade, concebida por Kadhafi e que resultou num fiasco. Feito prisioneiro, foi abandonado pelo Guia, que fez dele o “bode expiatório”. Acabou nos Estados Unidos (tem cidadania americana) e passa por ter sido colaborador da CIA. Natural da Cirenaica, regressou à Líbia durante a sublevação contra o ditador. Teve um papel nas operações, mas não foi recompensado. Voltou à América para regressar de novo ao país em 2013. Perante a anarquia, lançou-se numa aventura militar — a Operação Dignidade — para restabelecer um poder central. Depois de vários fracassos, é hoje o “homem forte” da Líbia.

Haftar tem duas vantagens sobre Serraj. Este tem a seu favor a legitimidade internacional. Mas, de facto, o GAN mal controla as milícias de Trípoli e está dependente das de Misurata. Haftar tem uma força militar própria e aliados mais poderosos: o Egipto, os Emirados Árabes Unidos, a França e, discretamente, a Arábia Saudita. Também militares americanos colaboraram com ele no combate ao EI. E é a grande aposta da Rússia. Serraj tem como aliados o Qatar e a Turquia. Foi também a aposta da Itália. A explicação da divisão árabe é simples: o GAN é patrocinado pela Irmandade Muçulmana.

O entendimento entre os dois homens é difícil. Haftar não aceita submeter-se a um poder civil. Recusa ser ministro da Defesa do GAN. Se insistir no desígnio de tomar Trípoli, haverá mais guerra. Os aliados não facilitam a paz. A Líbia é um terreno de confronto entre eles, sobretudo entre o Egipto e o Qatar. A rivalidade franco-italiana está aparentemente a atenuar-se, o que é a condição para uma política “europeia”.

Ambas têm altos interesses em jogo: o gás e o petróleo. A italiana ENI e a francesa Total são “actores geopolíticos” com influência maior do que se imagina e que agora têm interesse em se entender: ganham com a estabilização da Líbia. Por fim, Washington não vê com bons olhos o renascimento da influência russa na Líbia. Moscovo gostaria de ser o árbitro duma paz: a Europa ficaria em dívida.

Um país sem Estado

A Líbia tem “demasiadas” tribos, mas é um país homogéneo — étnica, religiosa e linguisticamente. O problema é histórico. É um país que nunca teve Estado. A Líbia independente do rei Idris foi uma criação tribal. Kadhafi não só destruiu os embriões do Estado e da administração como bloqueou a formação de uma sociedade civil. Ele próprio decretou a “abolição do Estado” e do governo em nome de um simulacro de “democracia directa”. O Exército e a polícia foram esvaziados para ceder o lugar à sua “guarda pretoriana” e às suas forças de segurança. Ele não tinha sequer um cargo de Estado, era o Guia, o poder absoluto. Desertificou a cena política líbia. Havia Kadhafi e uma negociação com as tribos, famílias e províncias sobre a repartição da renda do petróleo para garantir as suas lealdades.

Os líbios têm uma débil consciência nacional. O sentimento de pertença à tribo ou ao clã familiar sobrepõe-se a qualquer outra identidade. Avisou logo em 2011 a historiadora americana Lisa Anderson, especialista na Líbia, que os ocidentais se equivocam sistematicamente: a prioridade não é fazer eleições. Ao contrário da Tunísia, “a Líbia não está confrontada com a complexidade de uma democratização mas com a formação de um Estado”. Para isso, tem de construir “uma identidade nacional coerente e uma administração pública”.

É um trabalho de Hércules. A alternativa seria uma ditadura militar do general Haftar. O desejo de ordem, que faz a sua popularidade, não deve ser subestimado.

Artigo originalmente publicado na edição de sábado, dia 5 de Agosto, do PÚBLICO

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