Requiem à Saúde Mental em Portugal

Tive vergonha de ser isto que temos para oferecer a pessoas que de tanto mais precisariam para reencontrarem uma vida com sentido.

O paradoxo é gritante. Portugal, o país que orgulhosamente promove o desenrascanço a virtude, é um país pródigo em planos. Quem espreitasse as gavetas dos nossos ministérios e grupos parlamentares, dir-nos-ia precavidos e preparados para tudo. A avaliar pelos papéis, este é seguramente um país em que grupos interministeriais, conselhos, comissões e peritos se multiplicam no traçar de diagnósticos e na definição e redefinição de planos. Planos para um país que, no planear-se, se adia. O fazer-se um plano tornou-se em Portugal a forma de fazer-se algo sem que nada se faça. E de plano em plano, uns cozinhados em fogo lento, outros apressados no rescaldo devastador das chamas, o país continua em plano, num torpor induzido por apelos à concórdia e à paciência infinita dos portugueses.

Os casos dos planos que total ou parcialmente nunca o deixaram de ser são tantos e — tão convenientemente — já esquecidos que se tentaria em vão fazer um percorrido. Apesar da topicalidade, não é sobre o badalado “Plano da Floresta” que escrevo. Melhor ou pior, muitos preenchem esse papel. O que aqui quero resgatar é um outro plano, cujo prazo de validade “expirou” no ano transacto, sem que os resultados tenham sido devidamente escrutinados. Falo-vos do “Plano Nacional de Saúde Mental 2007-2016”. Para muitos será surpresa, mas ele existe, e foi mesmo comentado elogiosamente, nas páginas deste jornal, em 2007, ano do seu lançamento, pelo diretor da Saúde Mental da Organização Mundial de Saúde. (Sim, porque nós somos também particularmente bons em obter a chancela de idoneidade do perito internacional para os nossos planos, ainda que neste caso este se reservasse o direito de “ver para crer”, daí a dez anos...). O elogio não surpreende: o plano português segue as recomendações da OMS de descentralização dos serviços e desinstitucionalização, de fecho dos grandes hospitais psiquiátricos e criação de serviços de proximidade.

As soluções propostas seguem-se a um retrato duro — mas realista — do estado do acesso à saúde mental no nosso país: poucos se lhe dirigem, poucos têm onde se dirigir. Os recursos continuam concentrados em Lisboa, Porto Coimbra; as novas unidades criadas fora dos grandes centros permanecem unidades fantasma, sem médicos; os departamentos de psiquiatria e saúde mental de hospitais gerais têm dificuldade em atrair psiquiatras; estes concentram-se nos poucos hospitais psiquiátricos existentes, apesar de, de facto, apenas uma minoria do atendimento (24%) aos utentes ser lá prestada. O resultado está à vista e é desastroso: muita gente por tratar, outra tanta mal tratada ou condenada à institucionalização. É pois sem surpresa que o relatório conclui que o sistema sofre de uma bulimia: o internamento psiquiátrico continua a absorver a esmagadora maioria dos recursos (83%), quando todos os estudos científicos apontam para a sua limitada eficácia e — compreensivelmente — parca preferência junto de utentes e famílias. Sem visibilidade ou voz activa, porém, utentes e famílias continuam a ser as vítimas abnegadas de um sistema que, se interesses serve prioritariamente, não é certamente o deles.

É um lugar-comum dizer-se que o carácter de uma sociedade se mede pela forma como tratamos os mais vulneráveis. Pedrógão Grande veio expor alguns deles e a indignidade de uma política democrática que tem no voto a sua moeda de troca exclusiva. Menos comum é, talvez, pensar-se a saúde mental como uma questão política — no seu sentido mais fundamental, do quanto se pode submeter alguém ao poder dos demais, e fazê-lo impunemente. Quando o internamento psiquiátrico é a “solução” que o sistema oferece por inexistência de contrapartidas, este problema torna-se particularmente pronunciado. Tal é especialmente verdade para cidadãos com doenças mentais ou incapacidades cognitivas severas. Nestes casos, o Estado tem o poder de institucionalizar e tratar sem consentimento. Mas não se limita a eles — o internamento, compulsivo ou voluntário, abrange pessoas que vão da incapacidade cognitiva severa, à esquizofrenia, à bipolaridade ou à depressão. Pelas próprias circunstâncias do internamento, e sem qualquer imputação aos profissionais, todas elas se encontram vulneráveis a estruturas de micro-dominação — isto é, àqueles poderes informais, institucionais e interpessoais, que inevitavelmente se exercem e por vezes se abusam em unidades de internamento. Este é também um argumento determinante contra o uso (e o abuso) do internamento psiquiátrico que não em último recurso.

Quando falo em internamento psiquiátrico sei do que falo. Sei mais e sei menos do que gostaria de saber e, por isso, detenho-me no que sei. Nos últimos meses fiz múltiplas visitas a um familiar no Hospital Magalhães de Lemos, unidade de referência na saúde mental na região Norte. O meu familiar sofria de depressão, uma doença que afeta cerca de 400.000 portugueses, muitos dos quais sabemos não estar a ser tratados, e que se crê ter aumentado mais de 20% nos últimos dez anos. Assumindo, como só posso fazer, que o caso a que me refiro é um caso típico, eis o que o sistema nacional de saúde mental tem a oferecer a um utente sofrendo de depressão major que nele deposita a confiança e se interna voluntariamente: vigilância na toma de medicamentos; uma consulta por semana de uma dezena (ou um pouco mais) de minutos com um psiquiatra; longas horas de encarceramento; algumas horas de visita (a quem as tiver, pois são muito dificultadas pela distância geográfica e por vezes alienação das famílias) ou deambulação nos jardins e bar da instituição. O tratamento reduz-se, assim, ao tratamento farmacológico, e isso mesmo é reconhecido pelos profissionais, mesmo em casos (não serão todos?) em que é manifesta a sua insuficiência para trabalhar as causas profundas da depressão. Para a elas chegar é, porém, necessário tratar o utente não apenas como um paciente, mas como uma pessoa: não apenas elogiar o seu bom comportamento na instituição, ou a atitude abnegada que facilita o serviço, como ouvi dizer, mas saber “ouvir” as raivas e irritabilidades que os seus silêncios suprimem. Estas são perceptíveis apenas à luz de uma história de vida que só uma relação de confiança paciente-médico — impossível de construir em regime “express” ou quando, como também vi, o psiquiatra se faz acompanhar de um estagiário perante um paciente em desmoronamento — pode desvelar, para assim se poderem ver e tratar os sintomas como parte dessa história maior. Uma história que escapa ao psiquiatra, como escapa a toda uma série de profissionais que deveriam fazer parte da prática clínica de um tal hospital — desde logo, os psicólogos clínicos, os terapeutas, os assistentes sociais — mas que não o fazem em casos como o que descrevo.

São assim muitas as horas de internamento desperdiçadas — dias inúteis, à espera que os fármacos produzam o seu pequeno e efémero milagre, para pessoas que procuram desesperadamente “os pretextos fúteis” que lhes tornem de novo “os dias úteis”. Não é isso que estão destinados a encontrar, porém, num hospital psiquiátrico como o Magalhães de Lemos. Apesar de alguma especialização dos pavilhões, acabarão muito provavelmente internados com pessoas com todo o tipo de patologias e poucas que tenham, e com quem possam falar, da sua. Isto é conducente ao fechamento e, em pessoas fragilizadas, à interiorização da sua inevitável degradação para a pior das condições observadas. Nada do que observam abre para a vida, muito menos para um projeto de vida. Portas fechadas a sete chaves, ao lado de janelas partidas. Pessoas todo o dia sem fazer nada. Passos automáticos para a frente e para trás em corredores sem destino. Salas com velhas televisões a funcionar sem que ninguém lhes preste atenção. Cadeiras com corpos a oscilar inanimados em movimento pendular. Olhares perdidos no já não ver. Casas de banho que cheiram mal ou têm dejetos no chão, dentro e fora dos pavilhões. Portas que não fecham. Quartos degradados em que dormem várias pessoas, por vezes quase todo o dia. Nenhuma privacidade, para além do pequeno armário pouco seguro, donde é roubado o pouco que se tem. Equipamentos degradados. Beatas acumuladas à porta dos pavilhões, uma metáfora visual da ansiedade que se acumula. Lixo espalhado um pouco por todo o espaço verde, o único em que se respira. Um bar soturno onde pouco se come mesmo que a fome aperte. Refeições diárias que de tão más são rejeitadas mesmos pelos utentes que passam fome — e são muitos. Tive vergonha de ser isto que temos para oferecer a pessoas que de tanto mais precisariam para reencontrarem uma vida com sentido. Tive medo de ser uma delas quando — na minha busca desesperada por alternativas — me foi dito que é o melhor que o país — sistema público e privado — tem para oferecer.

Quando assim descrevo o que vi não o faço contra uma instituição em particular, mas contra um modelo de saúde mental completamente desajustado de uma prática clínica moderna e integrada que convoque várias disciplinas na reestruturação da pessoa para os embates e as alegrias da vida. Para o meu familiar o alerta vem tarde de mais. Talvez assim não seja para outros.

A autora escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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