O que separa o ministro e o sociólogo Augusto Santos Silva

Há um ano, o ministro Santos Silva deu a cara em defesa dos três secretários de Estado que viajaram a convite da Galp. Agora, enquanto sociólogo, é co-autor de um texto em que aquela prática é claramente considerada ilícita.

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Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros Miguel Manso

Entre o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, e o professor universitário de sociologia, Augusto Santos Silva, há diferenças substanciais. Ambos são a mesma pessoa, mas no que toca às questões de conflito de interesses e de ética a que devem obedecer os servidores do Estado, o discurso muda consoante Santos Silva fala na qualidade de ministro em funções de substituição do primeiro-ministro, António Costa, e quando escreve na qualidade de sociólogo.

A prova dessas diferenças está no livro Fraude em Portugal. Causas e Contextos (Maio de 2017), uma obra coordenada por António João Maia, Bruno Sousa e Carlos Pimenta, do Observatório de Economia e Gestão de Fraude da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, e prefaciado pelo ex-presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d’Oliveira Martins.

Augusto Santos Silva é autor, em conjunto com João Figueiredo [antigo secretário de Estado da Administração Pública e actual Juíz do Tribunal de Contas], do capítulo intitulado “Conflito de Interesses e ética do serviço público”. Neste texto, afirma posições diversas das posições públicas que assumiu em nome do Governo a 4 de Agosto de 2016, na qualidade de ministro substituto do primeiro-ministro, então de férias, quando rebentou o caso dos três secretários de Estado que viajaram a convite da Galp para assistirem a um jogo da selecção nacional de futebol no Euro2016, os quais se demitiram já este ano do Governo, requerendo ao Ministério Público a sua constituição como arguidos: Fernando Rocha Andrade (Assuntos Fiscais), João Vasconcelos (Indústria) e Jorge Costa Oliveira (Internacionalização).

Dúvidas dissipadas

Há cerca de um ano, enquanto responsável pelo Governo, o ministro Santos Silva deu a cara em defesa dos três secretários e Estado. E garantiu então: “O pagamento [posterior das viagens pelos três secretários de Estado] dissipa as dúvidas”. Explicando, face às questões levantadas, que “os secretários de Estado fizeram questão em reembolsar [o valor das viagens], ao fazê-lo o caso fica encerrado.”

Uma leitura diversa deste caso pode ser agora retirada do capítulo da obra Fraude em Portugal. Causas e Contextos, co-assinado pelo sociólogo Santos Silva. Embora, sublinhe-se, o caso concreto das viagens dos três secretários de Estado nunca seja citado directa ou indirectamente no texto em causa.

Depois de fazer uma explanação do enquadramento histórico-sociológico do tema “Conflito de Interesses e ética do serviço público”, o texto começa por estabelecer o conceito em causa: “Considerando doravante o caso específico da administração pública e definindo o conflito de interesses, no seu seio, como a situação em que se coloca quem exerce funções públicas quando se verifica um embate entre os deveres que tem de observar naquele exercício e s seus interesses particulares (pessoais ou de grupo), influenciando inapropriadamente o desempenho das referidas funções.”

Os dois autores, Santos Silva e João Figueiredo, sublinham de seguida que “o desenvolvimento da ética do serviço público é tributário dos três princípios fundamentais que enformam a administração pública e estão estreitamente relacionados entre si: a prossecução de interesses públicos, a subordinação à lei e a assunção de responsabilidades.”

Proveito próprio

E concretizando sobre o que é de facto o conflito de interesses nos ocupantes de cargos de Estado sustentam: “A administração pública não deve agir em seu proveito, nem dos seus titulares e agentes.” Para explicarem em seguida a importância de a análise da prática dos agentes de Estado ter ajudado a fixar doutrina e legislação sobre o assunto.

“As violações foram desde manifestações do que se poderá chamar atitudes e comportamentos menos adequado até casos de comprovada prática de crimes”, explicam os dois autores, salientando em seguida que “é sobretudo nesse âmbito que se torna mais visível a relação entre ética do serviço público e fraude, conceito que, no plano jurídico, pode encontrar várias traduções: desde corresponder ilícitos criminais até à violação menos intensa dos valores que norteiam os princípios e deveres éticos.”

Sempre – repita-se – sem qualquer alusão directa ou indirecta ao casos das viagens a convite da Galp, no texto agora editado e assinado por Santos Silva e João Figueiredo é ainda desenvolvido um aspecto do problema, o das consequências sobre o exercício das funções de Estado e a imagem deste. “Os referidos casos de violação evidente da ética e das regras do serviço público fragilizam a confiança do público nas suas instituições”, defendem os autores.

O trabalho coassinado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros analisa também de forma desenvolvida a vasta legislação internacional e nacional existente sobre o tema. E elege três diplomas como centrais para o estabelecimento do quadro legal em que se move o conflito de interesses e a ética do serviço público: a Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas, o Código de Procedimento Administrativo e a Carta Ética de 1997.

Dever de isenção

Da leitura conjugada dos três documentos legais, os dois autores retiram um conjunto de deveres que cabem aos ocupantes de funções públicas. Entre eles há um em que claramente é vedado o tipo de comportamento assumido pelos três secretários de Estado ao terem beneficiado de viagens a convite da Galp.

É ele o “dever de isenção” sobre o qual Santos Silva e João Figueiredo estabelecem: “Os agentes públicos não devem retirar vantagens, directas ou indirectas, pecuniárias ou outras, para si ou para terceiro, das funções que exercem, considerando com objectividade todos e apenas os interesses relevantes no contexto decisório, adoptando as soluções organizatórias e procedimentais e assumindo as atitudes e condutas indispensáveis à preservação da confiança naquela isenção.”

Ainda sobre a aplicabilidade do dever de isenção e a prevaricação dos agentes do Estado, afirmam os autores que “as situações de risco em que pode ocorrer conflito de interesses são inúmeras e daí a dificuldade em estabelecer um regime que os enquadre a todos adequadamente”. Mesmo assim estabelecem uma série de categorias tipo, em que incluem os “presentes”. E garantem de seguida: “As violações que ocorrerem nesses domínios poderão ser desde meras condutas inadequadas até à prática de ilícitos administrativos, disciplinares ou criminais.”

Face à dimensão múltipla do conflito de interesses, Santos Silva e João Figueiredo consideram ainda que “a complexidade aumenta se se perceber que não basta fixar orientações e regras só para os conflitos actualmente existentes, mas também para conflitos potenciais; nem só de conflitos realmente existentes, mas também para os que somente aparentam ser”.

E voltando aos três diplomas legais acima citados, os autores garantem que “os funcionários não podem beneficiar, pessoal e indevidamente, de actos.” Para, de seguida, acrescentarem a estes documento o regime legislativo enquadrador do “controlo da riqueza dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos - neles incluídos os titulares de órgãos de soberania” e concluírem que há “crime de recebimento indevido de vantagem para ‘[o] titular (...) que, no exercício das sua funções ou por causa delas, por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida’ (art. 16º)”

Código de Conduta

No final do capítulo, Santos Silva e João Figueiredo defendem que “a promoção efectiva da ética do serviço público depende da criação de uma cultura organizacional e ambiental de afirmação e adesão aos seus valores, e de intolerância às violações, cuja ocorrência deve pretender minimizar”. E admitem a existência de outros instrumentos além dos jurídicos, apontando a “a definição de políticas” próprias.

É neste domínio que pode encaixar e servir de explicação a decisão do Governo por si anunciada a 4 de Agosto de 2016 de que seria criado um Código de Conduta para os membros do executivo. “O actual Governo aprovará um código de conduta antes de Verão para que se densifique a actual norma”, garantiu então o ministro dos Negócios Estrangeiros, acrescentando: “Há gestos de cortesia aceitáveis, mas o Conselho de Ministros aprovará um código de conduta taxativo.”

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