Brillante, tudo no sítio

A luta pela sobrevivência é interceptada nas ruas e na lama de Mãe Rosa com a eficácia cortante do cinema do género: género Brillante Mendoza.

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Mãe Rosa: comerciante de um bairro pobre, negócio de drogas para manter a economia doméstica no nível da sobrevivência
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Mãe Rosa: comerciante de um bairro pobre, negócio de drogas para manter a economia doméstica no nível da sobrevivência
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Mãe Rosa: comerciante de um bairro pobre, negócio de drogas para manter a economia doméstica no nível da sobrevivência

Por alturas da sua “catedral”­  Lola, de 2009 – grande ano para ele, foi também o ano de Kinatay...­ – , o filipino Brillante Mendoza dizia-nos que lhe interessava a “realidade” mas também a “verdade do cinema”. Num filme em que uma avó se debatia com o guarda-chuva ao vento e uma cidade se dissolvia em água, Mendoza respondia a uma questão muito concreta sobre a chuva: era real ou era fabricada, era de cinema, de ficção, ou era real, de documentário? Veio dos céus e, simultaneamente, foi produzida por máquinas, respondia. Tal como os actores: havia profissionais e havia amadores. Tal como as cidades, acrescentamos, que no cinema fusional de Mendoza, em que o documento tem na ficção possibilidades de expressão e de revelação, foram sendo tratadas e dominadas como estúdios a céu aberto: cada figura humana, mais as suas incessantes caminhadas que não levam a lugar algum, cada produção do caos da realidade, são sinais da claustrofobia do mundo, da crueldade das relações de poder, provas da luta pela sobrevivência, e encontram no determinismo dos géneros cinematográficos forma de expressão eloquente.

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Mãe Rosa é um reencontro com tudo aquilo que, em 2009, mostrava um universo em expansão, mostrava um cineasta que começara tarde (aos 45 anos, em 2005, com Massagista) a conquistar o tempo perdido. Um feliz reencontro porque quando o nome de Brillante passava da promessa a confirmação, com prémios e ciclos a servirem de caução, houve um falhado encontro com Isabelle Huppert, mas que afinal era consequência irresistível do momento de que o filipino gozava (Cativos, em 2012). E se em 2015 Taklub, realizado depois da devastação do ciclone Yolanda (seis mil vítimas nas Filipinas), confirmava que o cinema para Mendoza só podia existir junto da catastrófica ligação com lugares e pessoas (as leis da natureza tão intransponíveis como as leis sociais), parecia ter como limite domesticador o programa oficial de protecção contra os desastres naturais que o gerara.

Mãe Rosa, então: é um dos títulos para guardar, numa escolha pessoal, com John John (2007, nos meandros do “mercado” de adopção e das dependências emocionais e económicas que engendra), Lola (duas mulheres que se cruzam, uma a avó de uma vítima de assassinato, a outra do neto suspeito de ser o assassino) ou Kinatay (a perda de inocência de um jovem polícia­  e a perda de inocência do espectador voyeur, um dos “escândalos” da história de Cannes.). Mendoza trilha de novo com as personagens as ruas de um bairro sobrepovoado, encharcado em água e lama, sabendo que elas não chegarão a lado nenhum. Talvez cheguem com o cinema, que as vai buscar e as apanha no momento sempre certo e sempre justo em que elas, emanação da realidade, simultaneamente se dizem com a eloquência da ficção – talvez se possa obstar, mas só se as alturas do lirismo de Lola servirem de comparação, que há uma eficácia e uma secura de “género” que ameaçam o filme como um maquinismo, desde logo o do “género Brillante Mendoza”, até porque se reconhecem as deambulações sem saída, as esquadras de polícia...

Mãe Rosa: pequena comerciante de um bairro pobre, quatro filhos, um negócio de drogas para manter a economia doméstica a flutuar ao nível da sobrevivência. Ela e o marido são apanhados pela polícia, que joga com o casal o jogo da corrupção, e cabe aos filhos intervir­ - conseguir o dinheiro que a polícia pede – para desenrascar os pais. Neste império determinista da precaridade, a câmara de Mendoza não faz um plano a mais, um daqueles para sublinhar, para se aproveitar da miséria com redundância ou para prometer epifanias. A montagem é cortante, cruel, é essa a única forma de estar com as personagens. Há um momento transbordante quando Mãe Rosa tem finalmente tempo para parar a pensar no que lhe aconteceu. E ...­  Mendoza, momento apurado, suspende  –... é tudo, e é o fim.

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