O salva-vidas de Eça renasceu nos fogos?

Há um curioso paralelismo entre uma história antiga e um drama bem actual. No centro, está um salva-vidas.

A história é antiga. Eça de Queiroz contou-a, como só ele sabia fazer, numa das Farpas que escrevia com Ramalho Ortigão. Datou-a de Julho de 1872 e começava assim: “Na Foz, há pouco, voltou-se uma lancha. Morreram 14 homens. Os socorros foram dados por uma lancha de pilotos, que se apressou corajosamente, e por outro barco, que veio, num risco agudo, da praia do Cabedelo. Conseguiram salvar 10 homens. 14 morreram.”

Esta era a notícia. Trágica nas mortes, como muitas outras. Mas esperançosa nos rápidos socorros voluntariosos que evitaram desgraça maior. Mas havia um pequeno pormenor a ter em conta e Eça não se esqueceu dele: “A 10 passos do mar, repousava o salva-vidas. O salva-vidas não desceu ao mar. (…) Entendeu que não era com ele. Eram apenas 14 homens que iam morrer afogados. Quem tinha obrigação de vir era a bomba dos incêndios. O salva-vidas não. O salva-vidas só se moveria para algum caso especial, em que ele pudesse dar os seus serviços especiais – como, por exemplo, se tivesse desabado um muro. Então correria. Assim, como era um naufrágio, o salva-vidas conservou-se imóvel, aboborando.” Soa-vos familiar, esta história?

O episódio passou-se há 145 anos, em plena monarquia constitucional, mas há coisas em que Portugal pouco muda, por muito que mudem os seus regimes e hábitos sociais. Voltemos ao dito salva-vidas. Tinha, escreve Eça, um fiscal remunerado e uma comissão dedicada. Esta, volta e meia, reunia-se, deliberava e era mandada louvar pelo governador civil. Um dia, perguntaram ao fiscal por que motivo não tinha o salva-vidas saído ao mar. A resposta foi claríssima: “Não saiu o salva-vidas, porque não há tripulação.” Abençoada clarividência. Eça não a deixou escapar: “Então a inteligência da comissão deu um grito e compreendeu – que para fazer navegar um barco é necessária uma tripulação.” Foi nessa altura que “o governador civil, surpreendido justamente por tanta agudeza e engenho, os mandou louvar em portaria. E começou-se a procurar uma tripulação.”

Sum sucesso. Cada marinheiro ou remador contactado, olhava o salva-vidas e recusava. “Foram chamados os afoitos, os destemidos, os heróicos. Torciam o barrete entre os dedos, e diziam secamente: – Menos eu!” A comissão, continua Eça, “tinha os cabelos brancos. A cada recusa afastava-se melancolicamente, e ia deliberar. Os naufrágios seguiam o seu curso trágico. O salva-vidas dormia.” Até que, finalmente, a comissão o visitou. E levou mãos ao nariz. Estava podre!

“Se descesse às águas desfazia-se – foi a opinião dos peritos. E a comissão, com o olfacto resguardado, saiu e continuou a deliberar. Sempre que uma lancha se volta a comissão reúne-se e, grave, delibera. E o senhor fiscal, concentrado e pontual, recebe o seu ordenado. A areia do Cabedelo reluz ao sol, as senhoras passeiam na Cantareira, as gaivotas voam, e os que naufragam morrem. E de vez em quando o senhor governador civil, despertando do seu cismar, manda louvar a comissão.” Continua a soar-vos familiar esta história, para lá do tempo e das diferenças?

Portugal anda, por estes dias e por via de uma dolorosa tragédia, não no mar mas em terra, não pelas vagas mas pelas chamas, a contas com umas letras. Duas vogais e quatro consoantes, para sermos precisos. Alinhadas numa sigla, dão o seu ar de importância. Justificada, porque foram caras. E o que é caro, pensarão muitos, deve ser bom. Os relatórios, porém, apontam-lhe falhas. Mas as letras defendem-se e dizem que correu tudo bem. Morreram 64? A culpa não é delas. É verdade, não é. Também não foi culpa do salva-vidas, em 1872, haver mortes no mar. Foi, isso sim, dos imbecis que acharam que bastava haver um salva-vidas a exibir-se na areia para que o mar, receoso, deixasse de engolir pescadores. Pois tantos anos passados, ainda há quem pense que basta exibir umas letras ameaçadoras à natureza, para que esta acalme o seu visceral furor. Estão enganados. Talvez, como sucedeu com o barco, as letras estejam podres e ninguém queira saber. Talvez tenha havido um péssimo negócio. Talvez tenha chegado a hora de pôr as letras na ordem.

E se tanta coisa se desfaz, desfaça-se ao menos uma que já está desfeita.

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